Vozes que se erguem da terra

Redemoinho em Dia Quente (Alfaguara, 2019) é o título do primeiro livro de contos da escritora Jarid Arraes. É também uma imagem tomada de empréstimo da narrativa que encerra a coletânea, “Olhos de Cacimba” (“Apareceu como um redemoinho em dia quente, levantando a terra toda”), e uma ótima forma de apresentar a já profusa obra da jovem autora, que conta com mais 70 títulos publicados em literatura de cordel, além de um romance e um livro de poemas.
Fazer erguerem-se do chão as vozes que compõem o imaginário de sua terra (o Cariri cearense), parece ser também a força da escrita de Arraes, com suas histórias que têm como principais traços a oralidade e o olhar telúrico. Os trinta contos (divididos em duas partes: “Sala das Candeias” e “Espada no Coração”) são quase todos em primeira pessoa, com uma linguagem fluida embora marcada por regionalismos que se refletem também nos enredos, cujos cenários remetem-se a uma Juazeiro do Norte com seus casarios e sua religiosidade à flor da pele.
Viajando com suas personagens na garupa dos mototáxis, frequentando casas onde coros de beatas se afinam em ladainhas dedicadas da santas e padroeiros, a autora constrói uma identidade feminina perpassada pelo sagrado e pelo profano — uma identidade revolucionária, apesar de vinculada às raízes de uma cultura patriarcal, com a figura de Maria frequentemente dividindo seu lugar com as imagens de Jesus Cristo e do onipresente Padim Cícero.
É o que vemos se desenrolar em “Gesso”, um dos melhores contos do volume, no qual uma mulher vítima de violência doméstica busca sua redenção numa cerimônia de “renovação” — um grupo de fiéis que se reúne para rezar e entoar cânticos nas casas das famílias. A cena final é uma ruptura com a atmosfera de temperança e mansidão na qual a fé católica se constrói, apesar de apego da religião à violência e ao martírio, escancarados por exemplo nos ícones dos corações de Maria e Jesus (presentes também no conto “Gilete no Peito”, que evoca estes signos associando-os à bissexualidade da protagonista).
No conjunto, há espaço para dramas mas também para o humor, característica de outro conto que se destaca dos demais: “Sacola”, texto que abre a obra com a aventura de uma carola que encontra um pacote cheio de comprimidos de droga. A ironia paira também por “Voz”, sobre uma mulher muda, que vende salgadinhos a fim de economizar dinheiro e poder se disfarçar de transformista, realizando o sonho de participar do Programa Sílvio Santos num quadro em que drags dublam artistas famosas.
Ao fim, este Redemoinho em dia quente sopra uma agradável brisa no panorama literário nordestino, promovendo um retorno às raízes de um patrimônio narrativo que, contemporaneamente, vem sendo deixado mais de lado por uma prosa cujo principal afã parece ser o de se urbanizar. Deixando-se embalar pela sua nostalgia metropolitana (“Despedida de Juazeiro do Norte” é uma ótima chave para abrir este tipo de leitura), Jarid Arraes retorna à terra e colore o preto-e-branco de suas lembranças de menina contista, correndo de pés descalços debaixo de um sol que nunca parou de iluminá-la.
Cotação: 3/5 [Bom]
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2978032806?type=review#rating_232822645
Próxima leitura: O Abridor de Letras, João Meirelles Filho