Vestidos de Mônica
Um dos grandes riscos do fluxo de consciência — sobretudo em narrativas estruturadas inteiramente à égide deste registro — é ficar num espectro entre a monotonia e a confusão, afastando o leitor das suas páginas. Não é o caso de Mônica vai Jantar (Não-editora, 2019), segundo romance do baiano Davi Boaventura.
Isso se dá, em parte, porque, em que pese a aparência radical desta prosa sem interrupções (são 90 páginas sem pausa para parágrafos ou qualquer sinal de pontuação), a narração se dá de forma tradicional, com um narrador em terceira pessoa muito nítido, que não nos deixa embarafustar no labirinto mental da protagonista sem nos situar muito bem temporal e espacialmente, com um olhar atento e sofisticado a tudo o que está ao redor.
Isso ocorre, também, em decorrência do ótimo estopim da trama: a descoberta de Mônica de que seu “marido namorado”, o homem com quem se relaciona há três anos e que está do outro lado da parede (toda a ação ocorre enquanto a personagem se veste para o jantar do título), foi flagrado se masturbando numa linha de ônibus e escapou de uma tentativa de linchamento dos passageiros.
Enquanto se questiona sobre o comportamento abusivo do parceiro, Mônica avalia as repercussões daquele ato obsceno em sua relação, os novos significados impostos no cotidiano que a fez refém daquele homem com um subterrâneo psicológico ao qual ela começa a ter imprevisto acesso.
Salta aos olhos a percepção temporal de Boaventura, seu senso de ritmo e a maneira como transita junto com sua personagem pelo apartamento, articulando as conexões que nos levam ao mundo particular desta subgerente de uma loja de móveis cujo enlace emocional se dá na corda bamba entre o afeto e a necessidade de se estabelecer na vida — de ultrapassar um limiar entre a falta de limites da juventude e as responsabilidades da vida adulta.
A debacle psicológica de Mônica, próximo ao final do livro, talvez traia um pouco a construção vigorosa que o autor faz desta protagonista, conferindo um poder maior ao outro personagem, ora antagonista, ora coadjuvante da história. Mas o envolvimento do leitor é tal que talvez, a esta altura, já tenhamos nos vestido de Mônica e nos tornado um pouco ela: aderindo ao seu dilema, nos posicionando perante o luto por uma figura que se foi e deixou em seu lugar sua pior faceta.
Cotação: 4/5 (Muito bom)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2924852210
Próxima leitura: “Vozes de Tchernóbil”, Svetlana Aleksiévitch