Uma mentira de pernas curtas

Tiago Germano
3 min readSep 1, 2019

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“Enfim, Capivaras” (Seguinte, 2019), Luisa Geisler

Dênis (Binho) é um mitomaníaco. Seus amigos inventaram o “hiperdroller”, uma peça de carro imaginária, feita para pegá-lo na mentira, mas segundo Binho “todo carro a partir do ano de 2000 tem que ter um hiperdroller” — e sua história soa tão convincente que até os amigos ficam tentados a acreditar nela. Binho afirma possuir uma capivara de estimação. E é para tirar essa história a limpo que Léo, Nick, Zé Luís e Vanessa decidem visitá-lo num fim de tarde.

Quinto livro da gaúcha Luisa Geisler, a aventura do grupo de adolescentes pelo interior de Minas Gerais é um divertido tributo à geração costumeiramente presente na sua obra — representada, aqui, numa fase anterior àquela que a autora tende a escolher como recorte (no pleno ingresso da vida adulta, com os desafios impostos por este universo). A ingenuidade da infância ainda paira sobre os cinco amigos, que embarcam numa picape em busca da capivara supostamente capturada, na história estapafúrdia contada por Binho, por um fazendeiro da região.

Nesta missão regada a doses cavalares de bebida barata e pacotes de salgadinho que vão sendo deixados pelo caminho, alguns recursos narrativos se destacam, como a opção de contar os episódios a partir dos pontos de vista de cada um dos amigos. Estes focos narrativos vão se alternando depois de listas que se remetem ao perfil de cada um dos personagens e marcam a passagem dos capítulos, diminuindo de tamanho e atuando como uma espécie de contagem regressiva.

Destacam-se também os tipos escolhidos pela autora para desenhar seus personagens: Nick é uma emo que curte animes e cujo visual lembra o da Avril Lavigne (embora negue a referência); Léo escapou por pouco de ser o que no interior se chama de “agroboy”; Zé Luís, o “filho da empregada”; Vanessa, a garota forasteira, que tenta se achar no bando… Num dos momentos mais perspicazes da trama, a personalidade de cada um é transfigurada nos calçados que usam ao caminharem em fila: um coturno, dois pares de All-Star, um tênis Adidas, uma espécie de sapatênis da Lacoste. O leitor já está tão familiarizado com cada um que nem é preciso dizer quem usa o quê. Tudo já está dito pelo imaginário que temos em torno das marcas e as “tribos” que as adotam.

Embora a jornada em busca da Capivara seja o grande motor do enredo, alguns conflitos entre os personagens vão se aprofundando e sendo tensionados aos poucos, a pretexto disso, atingindo um clímax simbólico no encontro com o animal e na arquitetura de um plano para resgatá-lo. Sob uma aparência leve e descompromissada, Enfim, Capivaras esconde a viagem que cada um de nós empreendemos no encontro desta criatura interior que, como o mamífero difícil de ser descrito para quem nunca o viu, parece ao mesmo tempo selvagem e sereno, pequeno e gigante, e um dia terá que folgar o nó de uma gravata para, enfim, entrar num carro e achar o caminho de volta para casa.

Cotação: 3/5 [Bom]

Review no Goddreads: https://www.goodreads.com/book/show/46200344-enfim-capivaras

Próxima leitura: Arquivo de Crianças Perdidas, Valeria Luiselli

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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