Uma estação no inferno

Tiago Germano
3 min readJun 11, 2019

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“Boca de Cachorro Louco” (Aliás, 2019), Kah Dantas

“Isto não é ficção”, avisa Kah Dantas na abertura deste Boca de Cachorro Louco (Aliás, 2019). Relato do relacionamento abusivo que viveu entre 2014 e 2015, o livro foi lançado em edição artesanal no final de 2016 e, após esgotar sua tiragem de 500 cópias, ganhou nova edição com prefácio de Lola Aronovich, ilustrações de Jéssica Gabrielle Lima e publicação do selo editorial Aliás, um coletivo de mulheres reunidas em torno do ideal de produzir livros, zines e oficinas de literatura.

“Respire fundo”, é a outra advertência que a autora faz, e há realmente que se tomar fôlego após o primeiro dos pequenos textos que funcionam com capítulos desta novela. Na passagem, é ouvida a voz ao agressor J., um namorado que logo passa a viver ao lado da protagonista e, entre insultos e desagravos, ofende sua integridade e introduz de maneira violenta o joguete psicológico que vai dominar boa parte do relato, reconstituindo toda a trajetória do relacionamento — do início conturbado até o seu final não menos conflituoso.

No restante da narrativa, a voz predominante é a da protagonista, que se refere a J. como o “filho do Diabo”, entre outras expressões que evocam o Mal personificado na figura do parceiro, alguém com quem um forte vínculo sexual se estabelece e que, após uma convivência mutuamente agressiva, revela-se um homem de temperamento emocional embotado e violentamente perigoso. A analogia constante ao “anjo caído” é uma solução fácil, e Kah Dantas se vira melhor quando consegue apresentar o antagonista em sua vida doméstica, desvelando, sob a cortina de uma intimidade construída em manias e códigos físicos comuns, uma figura humana patética — que passa os dias engordando na frente do computador, zerando o mesmo game de realidade virtual, peidando e arrotando.

Também mostra habilidade nas raras vezes em que desvia o foco do relacionamento e pousa seu olhar nas figuras exteriores como a dona da loja na qual o casal vai alugar uma beca, após mais uma das sucessivas brigas que, com alguma dose de cinismo da parte dele e indulgência da parte dela, ambos conseguiam ocultar sempre, ao se apresentarem perfeitos em público. O capítulo é construído com essa maneira de narra quase ininterrupta, sem muitos pontos finais, apelando para as vírgulas, e só peca ao apenas insinuar a falta de empatia de J., que logo descobriremos um ser indiferente à alteridade.

Não sendo uma ficção, é natural também que a cronologia dos fatos não obedeça uma ordem romanesca, mas afetiva, o que fica evidente quando o enredo aparentemente se fecha, mas a segundo parte do livro se anuncia — com um novo prólogo, uma nova (pseudo) epígrafe — , e um novo relacionamento, agora com T., que sublima a figura nociva de J. Os textos tornam-se ainda mais curtos, líricos e lascivos, fabricando um novo glossário poético que simboliza a abertura deste novo arco na vida da personagem, de passagem para um mundo ainda cheio de esperanças, mas com um senso maior de autossuficiência.

É quando o inferno do outro (não à toa, Sartre é citado neste ponto) abarca também a dimensão que temos de nós mesmos, e este mergulho nas trevas vislumbra, enfim, alguma luz.

Cotação: 2/5

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2853548474?book_show_action=false

Próxima Leitura: “Sangrem os Porcos, Depenem os Frangos”, Ivandro Menezes

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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