Um Machado de dois gumes

Um dos nomes mais promissores da ficção histórica contemporânea, o potiguar José Almeida Júnior venceu o Prêmio Sesc e foi finalista do Jabuti com o ótimo Última Hora (leia a crítica aqui), seu romance de estreia. Na esteira do sucesso deste e dos 180 anos de Machado de Assis, chegou às livrarias ano passado seu O Homem que Odiava Machado de Assis, uma fantasia ainda mais ambiciosa, retrocedendo não apenas um século (como era o caso da narrativa sobre o periódico getulista), mas dois (o século 19, do fundador da Academia Brasileira de Letras e nosso maior cânone literário: o Bruxo de Cosme Velho).
O salto temporal é maior, mas é feito com o mesmo maquinário construído em seu primeiro livro: uma voz narrativa sóbria e direta, quase monocórdica com seus diálogos curtos e objetivos, desenvolvidos em capítulos breves, que tentam impor um ritmo leve a uma prosa extensa (Última Hora tinha em torno de 350 páginas; este tem cerca de 240).
Aqui, o narrador é Pedro Junqueira, nêmesis de José Maria Machado de Assis desde a infância, que abre o romance fazendo uma reconstituição do velório de Machado de Assis na ABL e introduzindo já alguns dos personagens que flanam por ali e que irão compor a trama ficcional: Carolina, esposa e musa de Machado, o crítico literário Sílvio Romero, um de seus maiores detratores em vida, entre outros. A partir do segundo capítulo, segue a saga que explica o antagonismo entre Junqueira e o escritor, que data dos tempos de meninice.
É saborosa a forma como a rixa é exposta, elaborando uma espécie de imaginário em torno da gênese de “Dom Casmurro” — não de forma denotativa, mas a partir de uma série de piscadelas que Almeida Jr. começa a dar ao leitor mais escolado (que pode enxergar nos episódios contados nos primeiros capítulos uma possível inspiração para o início da obra-prima de Machado). Aos poucos, a personagem Joana vai se desenvolvendo como um dos possíveis modelos para Capitu — Carolina também será um outro modelo, como mais tarde se verá.
Além de Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas é outra obra incidental aqui: mais um motivo de controvérsia entre Junqueira e Machado, numa história que não fica apenas no cenário da então capital do Império, o Rio de Janeiro, mas viaja também além-mar, para Coimbra, então uma das mais importantes cidades da Coroa portuguesa. Não satisfeito em montar um ágil e emocionante enredo (que em alguns aspectos lembra os de outro colega seu de Sesc, o paranaense Marcos Peres), Almeida Jr. ainda oferece um panorama de bastidor do movimento abolicionista no Brasil, munido de uma competente pesquisa histórica.
O final súbito é que parece carecer de um fechamento circular, que o primeiro capítulo insinua com um certo pendor à metalinguagem — sugerindo a biografia de Junqueira, que é efetivamente escrita com este livro, oferecendo uma feição de Machado contrária às versões oficiais (como um vilão — e não como um herói). Por falar em contrariar a narrativa oficial, o livro tem o mérito de exibir já em sua capa a verdadeira face de Machado: negro “embranquecido” por uma história de apagamentos identitários em prol de uma noção de intelectualidade profundamente racista.
A imagem da capa, bem como as internas, são infelizmente das poucas virtudes estéticas do projeto gráfico que, a cargo da Faro Editorial, mais nos afasta que nos aproxima de suas páginas.
Cotação: 3/5 [Bom]
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3256365425?type=review#rating_274840854
Próxima leitura: Boa Noite, Amazona, Manoel Herzog