Um jorro de lirismo sacrílego

Tiago Germano
3 min readOct 14, 2020
“Orgasmo Santo”, Kah Dantas e Bruno Marafigo

É raro encontrar um trabalho a quatro mãos entre escritores e quadrinistas em que uma das duas artes não esteja sobrando. Ou a literatura se destaca mais que a imagem ou, o que é mais comum até, a arte gráfica salta aos olhos ofuscando o brilho do texto. “Orgasmo Santo”, de Kah Dantas e Bruno Marafigo, é um desses raros casos. Seria injusto com as ilustrações chamá-las somente de “ilustrações”: “Orgasmo Santo” não é um mero livro de contos ilustrados. Como também seria reducionista categorizar de alguma forma essas narrativas breves simplesmente como contos: há uma narrativa gráfica se desenvolvendo entre as palavras, com sua marca indelével.

Fruto de uma massiva campanha de financiamento coletivo, a obra sobra é no resultado: recompensas caprichadas e dois prefácios (assinados por Clara Averbuck e João Pinheiro) coroando um projeto que começou a germinar num popular blog de literatura mantido por Kah Dantas. Cearense radicada em São Paulo, Kah despontou no cenário independente com sua novela “Boca de Cachorro Louco”, lançado pela Aliás Editora, que já possuía um tom de erotismo bastante reprimido pelo seu tema: um relacionamento abusivo. Neste contexto, “Orgasmo Santo” é quase um grito de libertação: poucos vestígios daquela repressão restam aqui, sob o véu profano do título.

A arte de Marafigo tem o seu efeito de soltar as eventuais amarras do texto, e se as limitações do meu olhar não me permitem dizer mais que isso, me concentro num simples detalhe de um quadrinho capaz de demonstrar todo o poder do traço deste artista curitibano: na HQ “O Segredo de Safo” (o livro é dividido em quatro seções, sendo as duas últimas HQs baseadas nos contos), um dos quadrinhos mostra duas personagens tomando um banho de chuva. O balão contém a frase: “Molhados como a chuva que caía em nós” (p. 83). O detalhe que revela a sensibilidade de Bruno: uma pequena gota dissolvendo o texto, largando a tinta, manchando o texto. É de cair uma lágrima na página.

Kah Dantas não deixa por menos, com frases de um lirismo arrebatador, carregadas de uma semântica capaz de transmitir, em poucas linhas, toda a poesia com a qual ela encharca o texto: “tua barba, meu sudário, profetizava nosso fim” (p. 65) ou “Dancei no teu rosto e pari girassóis na tua boca” (p. 79), e contos de uma profundidade dramática que transcendem as expectativas mais hormonais de uma literatura fescenina, como o delicado “A massagem”.

Mas impossível destacar só uma, na ampla gama de histórias que parecem derivadas de uma brincadeira de fantasmas entre Hilda Hilst e Elvira Vigna: as duas trancando Nelson Rodrigues em definitivo no esquife do patriarcado, provando para que não é preciso mais que um sopro das ancestrais no ouvido de uma mulher contemporânea, para arrepiar a pele da página e estremecer os pelinhos da língua.

Cotação: 4/5 [Muito bom]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3595140761

Próxima leitura: “O Avesso da Pele”, Jeferson Tenório

--

--

Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.