Um jogo de previsões

Tiago Germano
3 min readJul 1, 2019

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“Uma Mulher no Escuro” (Cia. das Letras, 2019), Raphael Montes

Numa das passagens mais bem-humoradas de Uma Mulher no Escuro (Cia. das Letras, 2019), o nerd Arroz consola a amiga Victoria, uma jovem pressionada pelas demandas da vida adulta e pelo imprevisto retorno do assassino de sua família. “Nem todo mundo é Stephen King, né?”, ele diz, comparando o escritor, uma das mais profícuas referências no tipo de literatura feita por Raphael Montes, a George R. R. Martin — o autor de fantasia que “tem cara de quem gosta de dormir muito, comer bem, beber e encontrar os amigos”. “Infelizmente”, Arroz arremata, “acho que a gente está mais para George Martin do que para Stephen King nessa vida”.

Com cinco livros publicados, numa carreira marcada também por incursões na narrativa audiovisual, Raphael Montes parece contrariar as suspeitas de seu personagem. Sua produção não é apenas fértil, mas também competente, depondo melhor a seu favor que os inúmeros elogios que a cercam — que a pretexto de borrar a suposta fronteira entre uma literatura elevada e sua pseudovariante “de entretenimento”, acabam sempre incorrendo em preconceitos tão ou mais graves que aqueles que combatem.

O novo romance não foge a isso. Victoria é a única sobrevivente do que a imprensa chamaria de um “banho de sangue” que vitimou sua família, obra de um assassino conhecido como “o pichador” pela sua marca pessoal: seus mortos — o pai, a mãe e o irmão mais velho de Victoria — foram deixados com o rosto pichado, numa cena que abre o livro e é contada sob a perspectiva da pequena Vic, protagonista da trama que se desenrola anos depois, quando o assassino Santiago já foi solto e a jovem se depara com uma pichação no interior de seu apartamento, conduzindo-a de volta ao seu trauma.

O raio social de Victoria é reduzido, limita-se quase que somente ao seu amigo Arroz (com quem se diverte visitando apartamentos ainda ocupados por famílias que pretendem se mudar), às consultas com o psiquiatra Dr. Max (um médico que se põe constantemente na borda ética de sua profissão, a fim de tratar casos famosos como o de Vic) e ao trabalho como atendente no café Moura, onde conhece o escritor Georges (que começa a flertá-la e a tentar trazer uma certa “normalidade” à sua vida).

Embora este tímido rol de personagens prejudique o mistério da trama, tornando algumas soluções propostas por Raphael Montes um tanto previsíveis, algumas guinadas narrativas conseguem surpreender, como as investidas nos diários de Santiago — o assassino que começa a rondar a protagonista e cujas suposições do leitor em torno de sua identidade, invariavelmente (e como sugere o texto de contracapa), irão recair sobre uma dessas figuras masculinas que assediam a personagem.

O final também soa um tanto “amputado”, e basta isso para que não entreguemos outros segredos de enredo que vão se incrustando na leitura — como o paradeiro de Rapunzel e dos dois colegas de escola de Santiago, figuras evocadas pelos textos autobiográficos do adolescente nos quais Vic mergulha com perigoso interesse, escondida da polícia. Se o leitor, aqui, nunca se encontra tão no escuro quanto a personagem, é delicioso tropeçar nas pequenas armadilhas que vão sendo lançadas ao chão, sempre que pensamos enxergar o panorama geral deste jogo de previsões e das iluminações que Raphael Montes lança sobre ele.

Cotação: 4/5 (Muito bom)

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2874913533

Próxima leitura: “A Silenciosa Inclinação das Águas”, Alex Sens

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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