Terrivelmente evangélica

Tiago Germano
3 min readMar 28, 2020

“Lauren” (Caos & Letras, 2019), Irka Barrios

Uma das vencedoras do concurso Brasil em Prosa da Amazon, em 2015, Irka Barrios estreia no romance com Lauren, uma das joias do catálogo ainda recente da Caos & Letras, editora mineira capitaneada pelos escritores Eduardo Sabino e Cristiano da Silva Rato. Como no conto O Coelho Branco, releitura de O País das Maravilhas, esta narrativa longa foge às normas da prosa realista, apostando agora no terror e remando contra uma corrente que insiste em não reconhecer os méritos artísticos deste tipo de literatura (vide a divisão entre romance “literário” e de “entretenimento”, no Jabuti deste ano).

Em qual destas categorias enquadrar Lauren? Porque, o que há de “literário” nele é justo o que o torna tão cativante e agradável ao leitor: a limpidez narrativa de Barrios, que não é exatamente uma simplicidade formal, mas uma maneira de trabalhar a sofisticação da forma sem soar jamais pedante, ou se distrair de seu enredo a fim de fazer malabarismos com a linguagem. Um equilíbrio perfeito entre forma e conteúdo, que ingenuamente costumamos encarar como dispositivos distintos ou excludentes, sem perceber aquilo que críticos mais perspicazes já apontaram: qualquer diálogo que não revele um personagem não é um bom diálogo; qualquer nuance da história que não se revele na forma pela qual ela é narrada, idem. Nenhuma forma resiste sem conteúdo na boa literatura (e vice-versa, diga-se).

Para além destas minúcias, o livro tem um recorte mais do que necessário. Protagonizada pela personagem-título, uma adolescente que vive na provinciana Bosque Novo (“uma cidade pequena que dorme e acorda sem se questionar”), a ficção tem núcleos bastante atuais, embora ainda inusitados na literatura contemporânea: os colegas de escola de Lauren, que praticam bullying com a garota devido ao seu sobrepeso; e a sua família, que se tornou evangélica depois que o pai largou a bebida.

O desenrolar é um misto de Clube da Luta de Chuck Palahniuk e Midsommar de Ari Aster. Lauren enxerga nas rinhas clandestinas promovidas pelo colega Maurício uma chance de elevar seu moral na escola e conquistar a simpatia dos colegas. Ao mesmo tempo, confronta-se com a devoção fanática da mãe Ivete e a passividade do pai Abel diante da influência implacável da única figura masculina realmente potente da trama: o pastor Lair.

Toda estatrama conspira para o final catártico e pacientemente urdido, que se anuncia já na abertura do romance: Lauren sendo perseguida como uma bruxa pelas ruas de Bosque Novo, pelos moradores aparentemente pacatos, sedentos por fazer justiça com as próprias mãos. A forma como Barrios maneja o tempo neste último capítulo é tecnicamente impecável, para dizer algo que não se renda aos spoilers tão impertinentes às narrativas do gênero.

Basta mencionar que é admirável como a autora se apodera dos clichês deste tipo de história tão conhecida por nós, da literatura e do cinema (a Carrie de King/Peirce é talvez a referência mais óbvia), para construir uma obra tão sutil e tão sua, dando toques originais a elementos como a lenda que cerca a cidade — de um controverso casal de pioneiros cujos registros a personagem procura na biblioteca onde conhece Debbie, a garota que atuará como uma espécie de modelo para a ainda desengonçada Lauren.

Em tempos (e cenários) de apocalipse, Irka Barrios surge e cresce nestas páginas, como uma revelação.

Cotação: 5/5 [Ótimo]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3249595081

Próxima leitura: Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior.

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

Responses (1)

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Agora quero ler esse tbm.

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