Tchernóbil: uma crise de paradigmas

Tiago Germano
7 min readAug 30, 2019

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“Vozes de Tchernóbil” (Cia. das Letras, 2019), Svetlana Aleksiévitch

A ideia de que os soldados voltaram mudos das trincheiras da Primeira Guerra Mundial já se tornou uma platitude, e sempre é evocada quando analisamos o papel das tragédias coletivas na reinvenção da experiência de narrar. Introduzida por Walter Benjamin em dois dos seus ensaios mais citados (“Experiência e Pobreza”, de 1933, e “o Narrador”, de 1936), esta ideia alimenta um certo paradoxo que reside na necessidade de narrar o que é, por natureza, inenarrável: o indizível, aquilo que precisamos mas não sabemos como traduzir em palavras.

Se Primo Levi tentou vencer este paradoxo remetendo-se ao trauma da Shoah e da Segunda Guerra Mundial em seus livros, Svetlana Aleksievitch dedicou-se a semelhante empreitada em Vozes de Tchernóbil (Cia. das Letras, 2019), livro que expõe o desastre nuclear como uma chaga responsável não apenas pela catástrofe a que se remete diretamente, mas por uma ruptura no tecido social, uma crise que se opera em muitos níveis paradigmáticos, dos quais pelas limitações de tempo e espaço aqui impostas destaco três:

1) O paradigma humano: Tchernóbil é uma experiência incomensurável. Se as guerras reduzem as vidas a números, dados estatísticos desprovidos de drama humano, Tchernóbil devolve à vida seu caráter imponderável: centenas de milhares de pessoas morreram em decorrência de males como o câncer de tiróide, embora os registros oficiais só deem conta dos 31 indivíduos que padeceram devido a circunstâncias diretamente ligadas ao desastre, além de outros 15 envolvidos em circunstâncias indiretas, como o contato com aquelas primeiras vítimas.

“As perdas materiais de algum modo ainda podem ser calculadas, mas e as perdas não materiais? Tchernóbil foi um golpe para a nossa imaginação e para o nosso futuro. Estamos assustados com o nosso futuro” [p. 199]

Ciente da ineficácia de uma abordagem generalizante em torno do episódio, Aleksiévitch finca a bandeira de sua jornada, desde o princípio, num terreno particular: seu interesse não é em Tchernóbil, o evento sobre o qual muito já foi escrito e publicado, mas sobre o que chama de “o mundo de Tchernóbil” (p. 40), seu universo cotidiano: o nome da cidade bielorrussa não como metonímia do que veio a se tornar para o mundo desde 1986, mas de algo tão pequeno quanto uma casa — a casa que ela foi para cada uma das pessoas que abandonavam suas residência levando as portas porque era acima dela que velavam seus mortos (como narrado em uma das muitas passagens dilacerantes do livro).

Seu interesse é no pequeno homem, o “pequeno grande homem”, como afirma em “A Batalha Perdida” — discurso proferido por ocasião da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, aqui incluído como um apêndice à obra. É este ser, banal e comezinho, o seu narrador, cada uma das solitárias vozes humanas que, quando agrupadas, compõem os coros pontuais da tragédia: o “coro de soldados” da primeira parte, o “coro do povo” da segunda e o “coro de crianças” da terceira.

Svetlana, ela própria, é uma dessas vozes a entrar em cena numa suspeita “Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo”. O título, falsamente cabotino, tem sua pretensão demolida quando a escritora se revela não como autora, mas como testemunha: ela também assume sua condição de “pequena mulher” diante do que julga ser o “principal acontecimento do século 20”, talvez o principal século, dos principais acontecimentos. Tchernóbil torna-se um ponto indeterminado entre passado e o futuro, um ponto de inflexão do presente que seu livro tenta capturar e desprover de sua transitoriedade.

“(…) Como se em mim houvesse duas pessoas, a anterior e a posterior a Tchernóbil. Mas agora é difícil estabelecer esse ‘antes’ com toda fidelidade. A minha maneira de ver as coisas mudou” [p. 314]

2) O paradigma político: Tchernóbil está intimamente ligada, para usar uma expressão que é título de outro livro seu também lançado pela Cia. das Letras, ao “fim do homem soviético” e à derrocada de um éthos historicamente vinculado ao aparato ideológico socialista. Neste sentido, impossível não traçar um paralelo irônico entre este contexto e o atual, em países capitalistas como os EUA ou o Brasil onde a extrema-direita, sob a égide do combate ao radicalismo de esquerda e àquele sistema que floresceu na União Soviética, acaba demonstrando que (parodiando Tolstói) todos os regimes autoritários se parecem — os democráticos é que o são à sua maneira.

“Porque na história estarão juntos o desmoronamento do socialismo e a catástrofe de Tchernóbil. Os dois coincidiram. Tchernóbil acelerou a decomposição da União Soviética, fez o império voar pelos ares” [p. 184]

“Tchernóbil é uma catástrofe da mentalidade russa. Você nunca pensou nisso? Certamente estou de pleno acordo com os que escrevem que não foi o reator que explodiu, mas todo o sistema anterior de valores. Mas essa explicação ainda não é suficiente” [p. 264]

Como lembram os manifestantes nas ruas de hoje, com seus cartazes, “toda tragédia começa com alguém duvidando da ciência”. Assim tem sido na terra plana de Bolsonaro, assim foi na Tchernóbil de Gorbatchov, onde cargos técnicos eram ocupados por carreiristas burocráticos que se arvoravam de sua ignorância e demonstravam profundo desprezo ao conhecimento científico. Como descrito em um dos monólogos da segunda parte (“A Coroa da Criação”), as contingências de Tchernóbil ficaram a cargo de mentes cujas mãos eram maiores que o cérebro e que desconheciam a tabela periódica.

Homens como Sliunkóv, ex-primeiro secretário do Partido Comunista da Bielorrúsia em 1987, ex-diretor de uma fábrica de tratores. Ele figura no testemunho de Vassíli Boríssovitch Nesterénko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências da Bielorússia, num trecho que baseia uma cena da série da HBO inspirada nas vozes a que Aleksiévitch recorre.

“Se você sofre um ataque de apendicite e tem que operar, a quem deve se dirigir? Certamente a um cirurgião, não a entusiasta de movimentos sociais” [p.199]

“Eu te disse que incessantemente fazíamos relatórios. Mas calávamos e nos submetíamos sem objeções às ordens por disciplina do Partido” [p. 255]

“Os cientistas, que antes ocupavam o trono dos deuses, agora haviam se convertido em anjos caídos. Em demônios! E a natureza humana seguia sendo tal qual no passado, um mistério para eles” [p. 296]

“A ciência servia à política, a medicina estava amarrada à política. (…) Éramos pessoas presas do medo e do preconceito. Nas mãos da superstição” [p. 320]

“Não, as autoridades não eram uma gangue de criminosos. Eles eram, antes de tudo, uma combinação letal de ignorância e corporativismo” [p. 322]

“Que poder é esse! Um poder ilimitado de determinados homens sobre outros. Já não se trata de engano, é uma guerra contra inocentes” [p. 326]

Se a ignorância em seu caráter mais altivo (a estupidez) era domínio da esfera pública, na então União Soviética, a ignorância em sua variante modesta (a inocência) prevalecia na esfera privada e se coadunava com uma mentalidade subordinada ao coletivo, forjada em meio aos conflitos e revoluções sociais que assolaram a região desde tempos imemoriais. O homem russo era produto e ferramenta do Estado, cioso de seu dever para com a pátria e sua bandeira.

“O Homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, e em troca recebia uma ração. Uns tinham mais sorte, recebiam uma ração maior, outros ganhavam uma ração menor. No final das contas dava no mesmo, todos davam em troca a sua alma” [p. 195]

“O meu pai, quando eu terminei a escola e quis ingressar numa universidade civil, ficou furioso: ‘Eu sou um militar de carreira e você vai vestir paletó? Você tem que defender a pátria!’” [p. 218]

“A nossa gente é incapaz de pensar apenas em si, na sua própria vida; é incapaz de sentir a si mesma como um sistema fechado. Os nossos políticos são incapazes de pensar no valor da vida, mas tampouco as pessoas. Entende? Não nos constituímos dessa forma, somos feitos de outra massa” [p. 294]

“Ei vivia num país onde, desde a infância, nos ensinavam a morrer, nos ensinavam a morte. [p. 370]

3) O paradigma cultural: É evidente a fissura simbólica deixada por Tchernóbil no imaginário soviético. Súbito, todo e qualquer parâmetro era insuficiente para representar o que aconteceu. No livro, isso se reflete não apenas numa dimensão filosófica que se adere ao discurso popular (como veremos, mais de uma das testemunhas afirmam que é impossível não filosofar diante do que ocorreu), mas também num suposto esvaziamento do discurso literário — já que toda e qualquer ficção soa falsa diante do que se presenciou: toda fantasia é superada pela realidade, que por vezes parece ela própria uma ficção algo inverossímil.

“O acontecimento ainda está à margem da cultura. É um trauma da cultura” [p. 130]

“‘Tchernóbil’, dizia, ‘aconteceu para que haja filósofos’ [p.138]

“Fale de Tchernóbil com quem você quiser, todos se põem a filosofar” [p. 214]

“(…)na guerra você se torna um verdadeiro escritor” [p. 152]

“Às vezes me vem o pensamento sacrílego de que a nossa cultura não é mais que um baú de velhos manuscritos” [p. 168]

Muitos outros paradigmas são tensionados com o livro: o geográfico (a nuvem radioativa que pairou por Tchernóbil logo chegou a espaços improváveis do Globo Terrestre, ignorando fronteiras entre países e ampliando a calamidade), o temporal (a radiação modificou geneticamente os indivíduos — sobreviventes de Tchernóbil perpetuaram suas sequelas por gerações, marcando o DNA de seus filhos e netos), o ecológico, obviamente (como na série, é de cortar o coração as passagens a respeito dos animais domésticos e silvestres de Tchernóbil, que tiveram que ser abatidos porque toda e qualquer matéria orgânica — até as camadas superficiais da terra — tinham que ser enterradas e cobertas de concreto a fim de não aumentar a contaminação).

Como material literário, Vozes de Tchernóbil é tão inesgotável quanto os fatos derivados do evento do qual ele emergiu, dos cadáveres e suas histórias depostas em valas para sempre lacradas, só possíveis de ser revisitadas pela memória dos que ficaram e pela escrita de Svetlana Aleksiévitch que atua como uma coveira implacável, exumando esses corpos e expondo o que restou deles.

Cotação: 5/5 (Ótimo)

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2924921446?type=review#rating_229604192

Próxima leitura: Enfim, Capivaras, Luísa Geisler

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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