Roubando as vendas de Têmis

Livro vencedor, ano passado, da maratona literária da editora Oito e Meio, De Quando Éramos Iguais (Penalux, 2019) foi finalmente lançado este ano, migrando para o selo paulista que acolheu Eduardo Sens em seu principal trabalho: o ótimo romance histórico Adroaldo de Majestosa (2018).
Afastando-se do registro passadista, Sens volta à contemporaneidade que abarcou em sua estreia: a novela Os Outros Eus de Mim Mesmo (2017). Diferente desta primeira obra, porém, o novo passeio pelo gênero não investe em outros pontos de vista além do de seu protagonista, o promotor encarregado do caso de Carlos Otávio, o Tainho: um amigo esquecido que, na infância, morava na favela do seu bairro, num tempo em que as fronteiras sociais, embora já delimitadas, não revelavam tantos abismos quanto hoje revelam.
A trama se desenrola no tribunal, enquanto a defesa de Tainho se articula em meio a testemunhas de caráter duvidoso, que dizem tê-lo reconhecido entre os criminosos que, mascarados, assassinaram um idoso de boa reputação e querido entre a comunidade. Enquanto apresenta sua acusação, o narrador lembra de sua relação com o réu e de um crime no qual ele próprio (o promotor) se vê implicado nos anos de escola, junto com outros colegas.
O grande mérito da novela está neste confronto entre a possível — embora duvidosa — culpa de Tainho, no crime do presente; e a duvidosa — embora possível — inocência do promotor, no crime do passado. À luz dos dois eventos, Sens mobiliza toda sua experiência como promotor de justiça na área de Direitos Humanos e Cidadania em torno desta ficção, escrutinando os meandros da justiça e o próprio conceito de culpabilidade.
A narrativa tem um grande momento climático, com o discurso final do promotor que, ao mesmo tempo, elabora sua teoria sobre o crime e analisa os efeitos de suas palavras perante o júri. Não é sempre, porém, que as percepções do narrador conseguem se coadunar com tanta harmonia no jogo de realidades temporais proposto por Eduardo Sens. Por vezes, este trânsito não é muito suave e o passado perde um pouco do seu peso em prol dos hiatos que permeiam as lembranças do promotor — um homem cuja negação a este regresso epifânico sustentou toda sua carreira de sucesso, de mais de uma centena de júris ganhos.
Sens contorna esta fragilidade do seu narrador com um final que, muito acertadamente, rouba as vendas de Têmis (o símbolo da Justiça, com sua balança e espada em punhos) para depositá-la nos olhos leitor: será dele o martelar final, o veredito que irá pesar sobre a vida e os enredos desses personagens.
Cotação: 3/5 (Bom)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2896804327?book_show_action=false
Próxima leitura: “Elegia do Irmão”, João Anzanello Carrascoza