Roteiro para um baile macabro

Tiago Germano
2 min readJun 7, 2019
“Jamais o Fogo Nunca” (Relicário, 2017), Diamela Eltit

Há, por trás das ações dos personagens nucleares de Jamais o Fogo Nunca (Relicário, 2017), uma partitura corporal que Diamela Eltit preenche com uma poesia que só será alcançada em sua plenitude ao final do romance. São dois corpos enlanguescidos, estirados na mesma cama de um quarto, dedicados a um pas de deux vertiginoso, que a autora rege com descrições bastante atentas à anatomia dos membros se entrelaçando, debatendo a morte do ditador espanhol Francisco Franco (1892–1975).

Muito aos poucos, compreendemos que estamos diante de dois militantes de esquerda, integrantes da célula de um movimento de guerrilha, confrontando-se com o passado a partir das lembranças de uma personagem anônima, que reclama a provável morte de um menino que ainda não sabemos se é o seu filho ou se a vítima de um sequestro orquestrado pela célula.

(Célula: eis aí uma palavra-chave que, como tantas outras ao longo do texto, se ressignificará ao final — e é bastante recomendável, se após a primeira leitura você não entender a grande metáfora que Eltit estava urdindo, por trás do estranhamento provocado pela sua linguagem e pela incompletude dos fatos narrados, que você siga a velha recomendação de Faulkner àqueles que alegavam não entender os seus romances: leia duas vezes.)

A clara dependência desse sentido que vai se construindo aos poucos, e que só nos permite um alívio nem por isso menos perturbador, quando somos apresentados à profissão da personagem — que ganha a vida como cuidadora de idosos, lidando com a precariedade de corpos não menos miseráveis que o seu — , enfraquece uma narrativa que só ganha vulto exatamente nas páginas finais, onde um dos assaltos a banco executados pela célula é contado com a mesma virtuosidade anatômica da autora, esse olho que disseca os corpos e sua fragilidade quebradiça.

Num aparte extra-literário, é difícil não se sentir um tanto desconfortável com o prefácio (ainda mais quando ele é equivocadamente chamado de “prólogo”, se incorporando ao discurso diegético) do tradutor Julián Fuks. “Pode o subjugado falar? Pode o oprimido falar? Pode o desiludido falar? Pode o derrotado falar?”, ele se questiona — uma questão central na narrativa contemporânea, estabelecida justamente pela literatura testemunhal que emergiu com a derrocada de ditaduras como as da hispano-américa. O questionamento é pertinente, e a tentativa de iluminá-lo com algumas considerações é legítima, mas esbarra justamente numa interrupção incômoda da fala do subjugado, do oprimido e do desiludido em questão (e note-se, aqui, um equívoco por cima do equívoco: estamos falando de uma autora e de uma personagem femininas sem que o gênero masculino lhe dê conta). Sendo o “prólogo” um posfácio, faria mais jus à bela edição da editora Relicário.

Cotação: 2/5

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2847151028

Próxima Leitura: “O Homem é um Grande Faisão no Mundo”, Herta Müller

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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