Retratos da vida em província

Se, na última resenha, eu comparava a escrita de Diamela Eltit à de uma coreógrafa regendo os movimentos de um par de bailarinos, é muito provável que o ofício de Herta Müller neste O Homem é um Grande Faisão no Mundo (Cia. das Letras, 2013) se aproxime ao de uma pintora compondo o curioso cenário de uma província. Uma artista pontilhista, que adorna com breves pinceladas as cenas do cotidiano de um vilarejo submetido ao regime do ditador romeno Nicolae Ceauşescu (1918–1989).
Sujeito, verbo, predicado. Com pequenas variações, é esta a estrutura da oração de Müller, que não se permite a grandes descrições em sua prosa, ou a digressões de personagens, ou a qualquer contorcionismo que desvie o foco deste modo de narrar — que muito se assemelha ao de um observador frio, instado a descrever um quadro de enaltecedora beleza.
Uma aparente imparcialidade, consonante ao contexto do pós-guerra e ao fracasso do modelo comunista, que por vezes deriva em passagens fulminantes (sobretudo quando se debruça sobre a aridez das relações humanas que se desenrolam na comunidade), mas por vezes oferece somente ao leitor um bloco frio e marmóreo com o qual é difícil estabelecer algum vínculo de solidariedade e afeto.
É assim com Windisch, esse personagem que persegue a ideia de desertar da aldeia e voltar à Alemanha, sua terra natal. O preconceito derivado do protagonismo do país na Segunda Guerra Mundial é acachapante — “A pior mulher daqui vale mais que a melhor mulher de lá” é uma frase quase tão repetida na comunidade quanto o epigrama predileto de Windisch, que dá título ao livro.
O distanciamento se revela também em alguns personagens anônimos, designados pela sua função na vida doméstica ou no microcosmo social em que vivem: a esposa de Windisch não tem nome e sempre é referida, justamente, como “a mulher de Windisch”; além dela há também o “guarda-noturno”, o “coveiro”, o “padre”, o “delegado”, e assim por diante.
Apesar do subtítulo do livro (“Um Conto”), trata-se talvez de uma novela estruturada a partir de pequenos contos, cada um contendo uma destas paisagens ou cenas da vida em província: narrativas que por vezes se fecham e por vezes deixam um lastro a ser preenchido por outra que logo virá.
A mim, restou a curiosidade para ver como esse conjunto de estruturas (que vai da morfologia de sua prosa à divisão quase cerebral desses episódios) pode se moldar a um romance de maior fôlego na obra de uma autora como Müller — laureada com o Nobel em 2009.
Cotação: 2/5
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2850621411?book_show_action=false
Próxima leitura: “Paisagem com Dromedário”, Carola Saavedra