Quando a fuga encontra o desaparecimento

“Metade do mundo é feita de gente sumida e a outra metade está procurando quem sumiu”, diz Maria Valéria Rezende em seu Quarenta Dias. Um dos temas centrais da narrativa brasileira contemporânea (vide outras ficções como Rebentar, Enquanto Deus Não Está Olhando ou Barreira), o desaparecimento é um elemento coadjuvante em À Deriva (Edição do Autor, 2017), romance do escritor Fernando Ferrone protagonizado por Isabela, uma bióloga paulistana que se refugia do caos metropolitano em Vila Trindade, nas cercanias de Paraty (RJ).
Isabela está frustrada. Abandonou o sonho da carreira acadêmica em prol de um posto burocrático numa agência bancária. Acabou de encerrar um relacionamento de três anos com o metroviário Amadeu e não sabe o que fazer com seu cansaço além de tomar um ônibus e embarcar numa aventura de três dias pelo litoral carioca. No vilarejo, conhece figuras como Odete, uma mulher que luta bravamente contra um câncer, e Caetano, um aventureiro que viaja de cidade em cidade sobrevivendo de pequenos bicos. Ele chegou a Vila Trindade com uma missão: buscar informações sobre o paradeiro desconhecido da mãe, uma prostituta que engravidou de um rapaz de família influente (o pai de Caetano, que lhe deu estas informações antes de morrer).
A narrativa vai crescendo enquanto as relações entre esses personagens se aprofunda e a dimensão concreta do desaparecimento (do corpo de Odete e do destino da mãe de Caetano) se choca com a sua dimensão simbólica (o desaparecimento identitário de Isabela — mais uma paulistana anônima, engolida pelas engrenagens da cidade). Apropriando-se do clichê de uma classe média que precisa ir além do horizonte de concreto para contemplar os dramas reais que se desenrolam fora de seu cotidiano burguês, Ferrone consegue superar os lugares comuns de enredos do gênero e ressignificar os pequenos dramas de Isabela, sem incorrer em soluções fáceis.
Como adicional, inscreve seu romance também num rol de narrativas que tem a fuga da cidade como traço revelador de panoramas geracionais (Barba Ensopada de Sangue, A Vez de Morrer, Biofobia, Ruína y Leveza, Cabo Polônio…). Sua escrita tem arrimo e fluidez, destacando-se pelo uso predominante das minúsculas e pelos diálogos em itálico, além dos capítulos divididos unicamente por horários sempre quebrados — conferindo uma certa aleatoriedade que ele compensa com transições temporais conscientes, do presente para o passado da sua protagonista.
A cena em que Caetano encontra Donana, suposta amiga de sua mãe, é modelar, gigante em termos de sugestões e subtextos — embora estes sejam derrubados em seguida por uma certa inépcia descontável, quando pensamos que, como diria Bruno (outro personagem relevante da trama) sempre somos como motoristas que dirigem no escuro num primeiro romance: e às vezes precisamos apagar as luzes para tentar enxergar melhor o caminho.
Cotação: 4/5 (Muito bom)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2863984614?book_show_action=false
Próxima leitura: “Rádio Cidade Perdida”, Daniel Alárcon