Pais e filhos

Eles são documentaristas. Ou melhor: ela é documentarista; ele, “documentalista” — um especialista em documentação, dedicado a desenhar paisagens sonoras com seus aparatos de gravação sempre a tiracolo. Eles têm dois filhos. Ou melhor: ela tem uma menina; ele, um menino — ambos frutos de casamentos esfacelados. Um dia o casamento deles também irá se esfacelar, mas antes que isso aconteça ou enquanto isso acontece é necessário que eles façam uma viagem rumo ao velho oeste, movidos por um projeto de vida que, em vez de aproximá-los, vai distanciá-los irremediavelmente (e todos parecem ter plena consciência disso).
Arquivo das Crianças Perdidas (Alfaguara, 2019) é o terceiro romance de ficção da mexicana Valeria Luiselli, que estreou na literatura com a coletânea de ensaios Papeles Falsos (2010), único dos seus livros não publicado no Brasil. Ainda que não seja um híbrido de ensaio e romance, o gênero reflexivo marca presença aqui com a influência direta de Susan Sontag e das notas de leitura feitas pela protagonista nos diários da filósofa, um dos muitos livros presentes nas caixas de arquivo de cada um dos personagens.
As caixas são o grande achado estrutural da obra, cuja tessitura também se dá por fotos e transcrições de áudios. A intertextualidade, que se opera tanto no nível do suporte do livro quanto de sua narração (há referências mil, da própria Sontag até David Bowie — todas devidamente coligidas num apêndice com notas da autora sobre as fontes), é um dos alicerces da experiência de leitura, colocando o leitor num limiar, de resto, compartilhado também pelos quatro participantes desse road book cheio de curvas e sinuosidades.
A meio do caminho do enredo, vivenciamos todos a infância emocional que toda condição de abandono remete o ser humano, sejamos nós adultos como os pais ou crianças como os filhos. Esta condição está no âmago da maioria dos dramas dos personagens (não à toa, o anonimato é um signo comum a quase todos eles). Enquanto se dá indícios de que o “homem”, por exemplo, ainda elabora o luto pela morte da ex-esposa, mãe biológica da menina; a “mulher” é uma imigrante mexicana pouco confortável com a sua situação legal num país como os EUA (onde um muro se ergueu separando-a de sua nação materna e milhares de pessoas como ela são mortas diariamente, tentando ultrapassá-lo).
Já o “menino” está no limiar entre a infância e adolescência, começando a abandonar a criança que foi para formar o adulto que um dia será; e a “menina” está num limiar imediatamente anterior: abandonando a sua primeira criança e começando a assimilar as impressões do mundo e a colhê-las com as mãos (é muito sintomática, na personagem, essa transição, simbolizada por uma mania que ela repete constantemente durante a viagem: a de chupar o dedo, como um bebê desemparado, querendo reter ainda um resquício daquela fase).
Este desamparo total nos envolve absurdamente porque já sabemos, de antemão: esta história não irá terminar bem, e nada nos dá indício de que as relações aqui se restituirão, embora tudo nos leve a crer que se aprofundarão cada vez mais, no abismo que as conduzirá ao rompimento. Lido como uma história de amor ou como uma história de pais e filhos; lido como uma história de irmãos ou como uma história de viajantes, em todas as suas dimensões, Arquivo das Crianças Perdidas é um documento agudo e doloroso de uma família: este pequeno grande núcleo de forças desconhecidas e fragilidades escancaradas, e de emoções que vivenciamos antes mesmo de nos tornarmos indivíduos donos dos próprios destinos.
Cotação: 5/5 [Ótimo]
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2966016443
Próxima leitura: O Pior Dia de Todos, Daniela Kopsch