Pai (anti) herói

Tiago Germano
3 min readMar 31, 2020

“Cancún” (Cia. das Letras, 2019), Miguel Del Castillo

Há dois tipos de narrativas sobre paternidade: aquelas escritas por filhos, e aquelas escritas por pais. Cancún, novela de Miguel Del Castillo, tem algo destes dois tipos. Alternando capítulos em primeira e em terceira pessoa sobre o passado e o presente de Joel — um carioca abastado, fruto de um casal de pais separados — , o livro lança estes dois olhares em momentos aparentemente incorrespondentes. O que é curioso e inusitado é também bastante interessante.

Se, no passado, Joel é essencialmente filho (retratado entre a infância, pré-adolescência e puberdade), a visão do paterno já está impregnada ali, neste retrato em primeira pessoa construído ulteriormente, pela memória do pai que ele está prestes a ser, já na idade adulta.

É a descoberta deste pai que domina o presente da narrativa. Uma descoberta que se dá pela recuperação do seu próprio pai — o que o coloca de novo no papel de filho: uma função que não conseguiu desempenhar plenamente na infância (incapaz de construir uma história de seu progenitor em meio a uma vida doméstica afastada dele e completamente autocentrada, típica de um filho único).

De um lado, impera um senso de tragédia iminente construído pelo trauma de ter presenciado o sequestro de seu pai (um homem rico e que satisfaz todos os seus caprichos, provavelmente com o dinheiro que ganha em negócios escusos). Do outro, a verdadeira tragédia: o tempo que começa a corroer as bases familiares e levar embora a saúde do pai e da mãe, empurrando-o a uma rotina dividida entre a redação de um jornal e as UTI’s de hospitais.

Este temor quase obsessivo pela desgraça é construído, primeiro, a partir de eventos públicos (como a queda do edifício Palace) e privados (como sua introspecção na escola e as primeiras manifestações de uma sexualidade reprimida pela sua formação evangélica). A religião é outro detalhe que, por curioso e inusitado, torna-se interessante e até certo ponto original: só sob a perspectiva desta tradição cristã é que os temores de Joel conseguem boiar da superfície dos dramas burgueses de um “menino de apartamento”, para usar a denominação menos pejorativa. Sem ela, dificilmente seus traumas escapariam de uma certa pieguice elitista que Del Castillo consegue contornar também mais tarde, quando seu protagonista abandona todas as suas responsabilidades no Brasil para viajar a Cancún, seguindo o rastro do seu pai e da mal contada história do sequestro.

É quando os ingredientes desta breve narrativa, de mornos, atingem o seu ponto, confluindo para o belo (embora previsível) desfecho. Como bela (embora previsível) é a vida e seus vários ciclos, todos tão bem conhecidos e delineados, em que pesem tão difíceis de se encarar e tão complicados de se reproduzir. Com esta obra, Miguel Del Castilho deixa tudo isso impresso em literatura. Não é à toa que chamam isso de criação.

Cotação: 3/5 [Bom]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3254468204?type=review#rating_274595420

Próxima leitura: “Boa Noite, Amazona”, Manoel Herzog

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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