O pícaro sonhador

Tiago Germano
2 min readApr 3, 2020
“Boa Noite, Amazona” (Alfaguara, 2019), Manoel Herzog

Talvez por uma tentativa de desconstruir um dos maiores estereótipos de nosso imaginário como nação, a tradição romanesca contemporânea, no Brasil, é profundamente mal humorada. São raros os autores que vão de encontro a isso: Vanessa Bárbara, Juliana Frank, Reginaldo Pujol Filho, Jacques Fuks… O paulista Manoel Herzog é um dos exemplos mais emblemáticos. Sua prosa é lírica, de um lirismo só seu, com um pé fincado na poesia e outro no humor.

Não que Boa Noite, Amazona seja sempre engraçado. Ouso dizer, inclusive, que ele é melhor quando não consegue ser — ou quando este humor se desloca do trocadilho ou de outros artifícios de linguagem para pousar nos episódios da narrativa: como a hilária narração do desligamento do herói desta história, um bancário de esquerda, do banco em que trabalhava.

O protagonista da novela é, aliás, extremamente controverso. Não apenas faz parte das engrenagens capitalistas como tem a índole violenta, e luta contra esta e outras heranças polêmicas da perniciosa “cultura da heteronormatividade”. Divorciado da mulher e abalado pela perda do pai, sofrendo de uma agônica síndrome das pernas inquietas, ele abre uma exceção na sua suassunesca alergia ao turismo para embarcar numa viagem até a Amazônia.

A jornada é metade carnal, metade espiritual: as transições entre as andanças pela selva e as memórias do personagem são suaves e imersivas (atenção à epifania diante de um caldeirão, supostamente servido com carne de macaco), bem como aquelas que se dão entre o plano físico e o espiritual (o encontro do personagem com os seus fantasmas — o do pai morto e a ex — é outro ápice da narrativa).

O desfecho, após as pazes simbólicas com estas figuras, vai nesta mesma toada. O livro é curto — quase um aperitivo para o universo de Herzog (muito melhor exposto em seu romance anterior, A Jaca do Cemitério É Mais Doce) — mas se sustenta, e consegue driblar com muita criatividade os clichês de um tipo de literatura (esta de um existencialismo masculino, boêmio e bukowskiano) que começa a dar seus primeiros estertores.

Cotação: 3/5 [Bom]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3259588648

Próxima leitura: A Jaca do Cemitério É Mais Doce, do mesmo autor

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.