O hiper-realismo da morte

Primeira parte de uma ambiciosa sequência à saga familiar iniciada com O Frágil Toque dos Mutilados (2005), A Silenciosa Inclinação das Águas (Autêntica, 2019), segundo romance do catarinense Alex Sens, retoca o clichê tolstoiano e mostra que todas as famílias felizes são iguais; as enlutadas o são cada qual à sua maneira.
Marcados pelas tragédias que vitimaram Sara e Elisa na narrativa anterior, os dois núcleos deste livro — protagonizados, na Noruega, pelo escritor Tomas; e, no Brasil, por sua tia enóloga, Magnólia — tentam se reestruturar emocionalmente, agarrando-se a relações ora esfaceladas pelo acaso ora ancoradas naquele passado perverso.
Magnólia e Tomas são antípodas que, na trama, se veem espelhadas desde a primeira parte do romance — erigido, neste início, através do relato da decadência do casamento dela (Magnólia) com o professor universitário Herbert; e dos e-mails trocados por ele (Tomas) e o seu namorado Alister. O amor puro e vívido entre Tomas e Alister é um pálido reflexo do carinho que vai definhando entre Magnólia e Herbert, num matrimônio permeado por mentiras e traições.
Num primeiro momento, a prosa exuberante de Sens (o romance possui mais de 400 páginas, longas passagens descritivas e uma incursão pelo hiper-realismo que, por vezes — para ficar na Noruega e no seu maior expoente literário — lembra o lirismo detalhista de Karl Ove Knausgård) consegue adquirir um ritmo ágil, entrecortado por esses fragmentos epistolares que sustentam o leitor numa tensão permanente diante do desenho de um quadrilátero amoroso: Magnólia suspeita que Herbert a traia com Sylvia, que é esposa de Ângelo — que por sua vez é o seu amante nesta pérfida e luxuriosa ciranda.
Num segundo momento, embora Sens tente perpetuar esta mesma estrutura, inserindo por vezes trechos de um diário escrito por Magnólia na Noruega, o ritmo é mais lento e demorado; e o que mantém o leitor na narrativa é o encontro poderoso entre as duas imperfeitas antípodas: Mag e Tom, tia e sobrinho, envoltos no contexto de uma família cheia de cicatrizes, que viaja ao estrangeiro para dar apoio emocional ao rapaz, depois de um evento crucial que está no centro nervoso do romance.
“Talvez o maior castigo para um morto fosse a recusa da extensão de sua permanência através dos objetos, como algumas pessoas faziam doando roupas, remodelando quartos, vendendo móveis ou, de maneira mais amarga, rasgando foto, atirando no lixo o desnecessário, estourando cada lembrança como um casulo de pus, vendo sua matéria inflamada escorrer até não sobrar nada além de um resíduo de sua existência”, reflete Magnólia em um dos trechos mais vigorosos do livro.
Cavoucando nesse casulo, inflamando ainda mais os vincos abertos pelo luto na pele de seus personagens, Sens aprofunda seu olhar sobre a morte — e não abre concessões: nos conduzindo de mãos dadas a personagens muitas vezes antipáticos (como somos todos, quase sempre, em face do abismo da dor alheia). Embrenhando-se por temas delicados como o suicídio (o livro é dedicado à crítica literária Roberta Carmona, morta em julho do ano passado), o escritor busca uma saída corajosa neste labirinto de redenções e de culpas, em que a grande tragédia é sempre a dos vivos, “dos que ficaram para suportar a dor de mais de trezentas mortes”.
Cotação: 3/5 (bom)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2879152580
Próxima leitura: “Animais Diários”, Daniel Gruber