O habitante real de Paulo Scott

Tiago Germano
3 min readOct 27, 2020
“Marrom e Amarelo” (Alfaguara, 2019), Paulo Scott

“Nenhuma boa história é leve (…), nenhuma boa história deixa de fora o que é denso, o que é pesado”, diz a mãe de Federico no mais recente romance de Paulo Scott, Marrom e Amarelo. Se, em 2011, o autor abria a década com um livro que veio a se tornar um dos mais relevantes da ficção brasileira contemporânea (O Habitante Irreal), Scott fecha esta mesma década com outra pedra de igual quilate: uma obra-prima, leve em sua aparência, mas pesada, densa como um pequeno diamante.

Isso não é pouco para um escritor que, nos últimos anos, intercalou um trabalho poético coeso com dois breves acidentes de percurso narrativos: os romances Íthaca Road (2013) e O Ano em que Vivi de Literatura (2015). Com uma boa dose do experimentalismo deste, e a concisão exercitada naquele, Marrom e Amarelo marca a volta do escritor a um tema atávico não somente em sua literatura, mas em sua biografia e na de um país permeado por conflitos étnicos, sob o véu da cordialidade e da democracia racial.

Federico, protagonista da história, é um ativista escalado para uma comissão responsável pelo desenvolvimento de um software que pretende otimizar o processo de seleção de candidatos às políticas de cotas das universidades brasileiras. Há uma forma simples de explicar a ideia da comissão, exposta no título de um documento tão longo quanto o início deste parágrafo. É pela controvérsia dessa simplicidade que Federico se vê empurrado na espiral atordoante de seu passado: o software pretende submeter os candidatos às cotas a uma “régua de cor”, avaliando se cada um é “preto o suficiente” para merecer a reparação histórica pressuposta pelas vagas.

O próprio Federico, nesta paleta fenotípica que um membro da comissão compara à cartela de cores do site de uma marca de tintas, é um “imenso não lugar” difícil de ser “gerenciado”: filho de uma família negra, ele é apenas um pardo de “cabelo lambido” se comparado ao seu irmão mais novo Lourenço — um talento no basquete, uma pequena celebridade do bairro pobre do Partenon, em Porto Alegre. O entrelugar de Federico não está apenas na sua pele: ele também é filho de um perito criminal, num bairro da metrópole onde o filho de um “polícia”, para o bem ou para o mal, é sempre um alvo.

Capítulos no passado (narrando o presente) e no presente (narrando o passado) são intercalados numa estrutura cheia destes sutis artifícios. Roberta, filha de Lourenço e sobrinha de Federico, é quase uma projeção em antípoda do tio: e é um episódio desencadeado por ele com implicações no futuro da jovem que coloca Lourenço em face da raiva, uma característica de sua personalidade proveniente da soma de todas as ambiguidades de sua vida (a contundência do racismo e sua suposta condescendência, não sendo ele o “preto ideal” que talvez seja o seu irmão).

Em que pese o final abrupto, o romance tem uma técnica impecável, com seus diálogos labirínticos, entremeados na narração, que dão alta voltagem às cenas de tensão e de clímax. Há uma completa isomorfia entre o texto e o seu herói: como Federico, o livro todo parece sempre prestes a explodir em nossas mãos, mesmo nos momentos de calmaria e nos hiatos proporcionados pela relação com duas personagens femininas de maior significância na trama, Bárbara e Andiara.

Certa vez um amigo me falou que lhe chamava a atenção uma veia sempre saltada no pescoço de Paulo Scott, quando que ele falava em público. Em Marrom e Amarelo esta veia está saltada nas páginas — e, nossa, como ela pulsa.

Cotação: 5/5 [Ótimo!]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3610814203

Próxima leitura: O Avesso da Pele, Jeferson Tenório

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.