O evangelho da revolta

No conto que abre este Sangrem os Porcos, Depenem os Frangos (Moinhos, 2018), Ivandro Menezes joga com a narrativa bíblica e sua estrutura de capítulos e versículos, apresentando um Deus sendo ardilosamente manipulado por sua criatura: o homem. “Ante a dureza de vossos corações”, pondera o Criador, “ordeno aos meus anjos que sejam os transgressores lançados aos dentes do Leviatã. Os homens, enfim, celebraram a deus por finalmente ter-lhes feito justiça”.
Mastigados pelo Leviatã vão sendo, ao longo dos demais contos, todos os personagens do livro, esta celebração do Mal perpetrado pelos homens sob a leniência divina. Em que pese a brevidade da coletânea de pouco mais de 50 páginas (ou talvez exatamente em virtude dela), o autor consegue construir um universo denso e consistente em sua estreia, que passeia por tipos urbanos rudes e violentos, encharcando seus contos de uma oralidade que raramente parece emulada — algo difícil entre os escritores que se propõem a escutar a “voz dos becos”, e só parecem lhe ouvir os ecos.
Numa das narrativas mais impressionantes do conjunto, “Três Meia Zero”, Ivandro instala sua câmera diante de uma suicida que performatiza seu ato via streaming, amealhando “alguns likes, outros tantos comentários”. A câmera dá seu giro e mostra Enrico masturbando-se com a webcam ligada, Aparecida assistindo ao vídeo de Enrico, Nazaré assistindo ao vídeo da suicida, uma ciranda vertiginosa (com toda a crueza e desamor do último verso do poema drummondiano), obra de muito engenho e de um olhar inquieto, que tenta esgotar o mundo ao redor por sabê-lo inesgotável.
Embora o restante dos textos não sejam formalmente tão ousados quanto esses, eles são hábeis na arte do subtexto, essa fórmula clássica do conto que vai evocando seu desfecho em pequenos bocados, proporcionando sua erupção final. É assim, por exemplo, em “O Homem Faz o que é Preciso”, conto que acertadamente fecha o volume com a história tragicômica de dois amigos — um deles em meio a uma crise financeira que o faz apelar a meios pouco ortodoxos para prover a família.
A linha final do conto, depois de sua reviravolta, é de uma delicadeza desconcertante, que nos deixa ainda mais desamparados diante da única falta desse livro (que por vias tortas é também o grande mérito de cada um de seus contos, individualmente): a de terminar no momento certo, mas muito antes de chegarmos ao fim dele.
Cotação: 5/5 (Ótimo)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2854214192?book_show_action=false
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