Nova ordem

A epilepsia é uma condição neurológica cercada por mitos que só não superam aqueles criados em torno dos gênios afetados por ela — um rol de biografias trágicas que vai do artista plástico Van Gogh ao músico Ian Curtis, vocalista do Joy Division, banda que se reinventou após seu suicídio e derivou no New Order (grupo até hoje em atividade). Estruturado a partir de títulos que se remetem à discografia e ao cancioneiro inaugurados por Curtis (“Power, Corruption and Lies” não apenas dá nome a um dos capítulos como é referenciado na capa do livro), Controle (Cia. das Letras, 2019) marca a estreia de Natalia Borges Polesso na narrativa longa após uma trajetória no conto que lhe rendeu o Jabuti por Amora (2016).
Protagonista da novela, Maria Fernanda tem o seu primeiro ataque epilético no dia em que sofre um acidente de bicicleta. De adolescente desengonçada, tentando achar o seu lugar no mundo e no microcosmo da turma formada pelos amigos Davi, Alexandre e Joana, a personagem torna-se uma criatura assombrada pela sua condição, desenvolvendo uma inaptidão social apenas comparável à inaptidão dos pais e do seu núcleo de amigos em lidar com o seu problema. Na solidão de seu quarto, vez ou outro compartilhado com a amiga Joana, Maria Fernanda ouve e traduz as letras das músicas que tocam no seu walkman. Faltando aulas, ela começa a se atrasar na escola, perdendo o bonde do amadurecimento em que aparentemente embarcaram todos os seus colegas.
A passagem do tempo vai sendo observada a partir da transição na vida destes amigos que namoram, cursam faculdades, casam e têm filhos, enquanto o cotidiano de Maria Fernanda só não é imutável pela relativa estabilização do seu estado de saúde e pela transição das tecnologias com que ela convive: do walkman, ela passa ao discman; e do discman ao mp3 e aos sites de compartilhamento de música que conhece nas madrugadas embaladas ao pulso único da internet discada. É em chats de bate-papo, oculta sob um nickname que (claro) homenageia o New Order, que ela encontra seu primeiro namorado virtual, relacionamento que ajuda a manter sua sexualidade em um apático estado de latência, desde um episódio ambíguo envolvendo Joana no passado.
Embora seja interessante observar a maneira como Polesso representa estas transições a partir dos signos da tecnologia e de elementos externos à personalidade de Maria Fernanda, a novela ainda parece um tanto elíptica no que diz respeito à idade adulta da personagem. Em vez de optar por um descompasso entre o vazio de vida exterior e o excesso de vida interior da protagonista, a escritora opta por lhes dar uma falsa equivalência, o que só é quebrado quando Maria Fernanda, já adulta, resolve “fugir de casa” e empreender sua aventura transformadora. É quando a heroína do livro, em permanente negação, enfim aceita o “chamado” do mundo ao redor.
Trata-se do melhor momento da narrativa, quando as referências musicais vão fazendo mais sentido embaladas pela metáfora fundamental do livro, que Polesso resume em palavras melhores que as que eu talvez empregasse: “Naquela hora, entendi por que eu sempre tinha gostado muito de New Order e por que as músicas deles pareciam se encaixar perfeitamente uma em cada parte da minha vida: eles eram comedidos, e eu me identificava completamente. New Order é uma banda que estourou sem um líder, sem um rosto. Uma banda que conseguiu se desenterrar do peso de uma morte. Eles refizeram o futuro”.
Sem grandes fetichizações — algo raro ao se lidar com temas geracionais, perpassados pela sexualidade e por uma cultura musical atravessada pela figura convulsiva de Curtis se debatendo no palco — , Natalia Borges Polesso reinventa-se, também, em “Controle” e arrisca-se, como sua personagem, sem o menor medo de perdê-lo.
Cotação: 3/5 [Bom]
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2975791528
Próxima leitura: Redemoinho em Dia Quente, Jarid Arraes