Inverno da alma

Tiago Germano
3 min readApr 23, 2020
“O Verão Tardio” (Companhia das Letras, 2019), Luiz Ruffato

Se “Flores Artificiais” (2014) é o registro de uma diáspora da obra de Luiz Ruffato de Cataguases, este “O Verão Tardio” é o registro de um triunfal retorno a estas raízes. E o curioso é que o que aquele tem de disperso (um romance que na verdade é uma coletânea de contos ou, melhor dizendo, de crônicas de viagem forçadamente compilados numa frágil estrutura de romance), este tem de concentrado: um retorno inspirado do autor ao gênero, depois de uma década menos profusa que a anterior, marcada pelo estabelecimento da saga “Inferno Provisório”.

O argumento parece banal na literalidade desta transcrição simbólica: Oséias, um representante comercial que fez sua vida na estrada (embora tivesse São Paulo como base geográfica e familiar), retorna ao interior mineiro após um casamento frustrado que lhe gerou um filho problemático, ao qual o pai manifesta pouco apego. Mortos seus próprios pais e a irmã suicida, ali na pequena cidade o protagonista encontra os laços familiares que lhe restam: a irmã nova rica, às voltas com suas inquietações de burguesa emergente (as dietas, o curso de línguas e as viagens para Nova Iorque); a irmã mais pobre, na luta diária pela sobrevivência (os dois netos que cria, o marido abusivo, os “bicos” de um filho malando e o parasitismo do outro); e o irmão rico, preocupado com a própria segurança e dos seus empreendimentos financeiros e matrimoniais (a chácara onde realiza churrascos semanais para seus trabalhadores, e as duas famílias que mantém: a sua e a de sua amante).

É louvável a maneira pela qual Ruffato constrói este verdadeiro painel dos estratos sociais brasileiros sem resvalar na cartilha sociológica de uma literatura que, privilegiando a crítica a este retrato, acaba por negligenciar as nuances psicológicas que permeiam os personagens retratados. Neste sentido, o personagem Oséias revela-se um olhar perfeito pousado sobre este panorama: cínico, em sua disfunção (ele não conseguiu se inserir em nenhuma destas posições), e igualmente empático em sua situação afetiva e emocional (são os seus irmãos ali: todos eles com famílias desestruturadas como a sua, e com uma parcela tão grande como a dele de responsabilidade no quinhão desta desestrutura).

A isso se sobrepõe a culpa que todos (em maior ou menor grau, reagindo de uma maneira ou de outra) compartilham pelo suicídio da irmã: o suicídio, manifesto supremo de inadequação e, não à toa, um tema que vai ganhando cada vez mais importância ao longo das páginas. Como aditivo tangencial, há ainda o desenho muito bem delineado de um cenário provinciano aqui, a partir dos ex-colegas de escola, envolvidos em pequenas corrupções municipais, ou da ex-namorada, que representa todo um passeio pelo bosque de uma outra ficção que subjaz a esta: aquela do que seria a vida de Oséias se ele tivesse permanecido, tomado a outra curva da estrada, o outro rumo do destino.

“O Verão Tardio” é um retorno pródigo, de um filho nada pródigo, à casa dos pais.

Cotação: 5/5 [Ótimo]

Resenha no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3297021367

Próxima leitura: “A Cidade Dorme”, do mesmo autor

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.