Ficção em tempos de pós-verdade

Derivada de uma bem sucedida campanha de financiamento coletivo no Catarse, a coletânea de contos “Fake Fiction” compila a ficção de 36 autores contemporâneos e suas respectivas visões sobre a realidade, submetida ao filtro da pós-verdade. Organizada por Julia Dantas e Rodrigo Rosp (que também assinam o ótimo prefácio e dois dos contos do miolo), a obra tem um projeto gráfico ousado, assinado por Luísa Zardo — cuja capa e contracapa constituem, ao seu modo, uma narrativa que complementa o conjunto de breves histórias.
Concentradas sobretudo no entorno das eleições de 2018 no Brasil, os contos exploram matizes e gradações realistas diversas até chegaram ao tom distópico das narrativas finais. A exemplo do que tem ocorrido em alguns romances brasileiros (“O Marechal de Costas” ou “Meia-Noite e Vinte”, por exemplo), os protestos rendem algumas das boas páginas da coletânea, a exemplo do conto que abre a seleção: “Maria”, de Danichi Hausen Mizoguchi, sobre as manifestações da Primavera de 2013 no Rio de Janeiro e seu papel na derrocada moral e estrutural de nossas instituições democráticas.
Os protestos alcançam ressonância em muitos outros contos. “Flashback”, belo experimento de inversão narrativa de Renata Wolff, narra uma história de amor permeada por eles. “Preciso falar com o Gabi” faz um paralelo contundente entre as experiências de alteridade vivenciadas nos confrontos com a polícia e os aplicativos de relacionamento. E “A dança da Hora” é uma perfeita parábola de amizade em tempos de rupturas tão violentas.
Há, claro, contos que retrocedem antes de avançarem nos traumas individuais e coletivos infligidos pelos regimes autoritários: é o caso do lírico e pungente “Os dois quietos, uma luz quase inexistente”, texto de Arthur Telló que remonta o período da ditadura militar e o assassinato como política de Estado.
“Ninguém segura a mão de ninguém”, de Leandro Godinho, explora os traços racistas da barbárie e “As que não estavam nos jornais”, de Leila de Souza Teixeira, escancara seu viés igualmente misógino. Destes títulos, que mais me chamaram atenção no todo, acrescento o delicioso “O asco dos náufragos”, de Carlos André Moreira, um monólogo que, no melhor estilo bernardiano, apropria-se da dicção bolsonarista no encontro entre dois velhos amigos que se reencontram.
Dizer que “Fake Fiction” é um livro necessário é pouco. E dá a falsa impressão de que a época é a única demanda que justifica sua procura. Não é. Na perspectiva mais otimista, as estantes do futuro nos provarão. Se as fogueiras não o fizerem antes.
Cotação: 4/5 [Muito bom]
Próxima leitura: “Orgasmo Santo”, Kah Dantas e Bruno Marafigo
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