Enfim, um romance

Romance de estreia do escritor Itamar Vieira Junior, Torto Arado é um caso sui generis na literatura brasileira contemporânea. Em meio a obras que, numa visão mais rigorosa dos gêneros literários, são novelas centradas num único personagem e seus conflitos existenciais, seu texto recupera a estrutura clássica — e atemporal — do romance: uma narrativa com vários núcleos e seus respectivos arcos, que se abrem a partir de uma base consistentemente formada por duas protagonistas — as irmãs Bibiana e Belonísia.
Esta peculiaridade (compartilhada por outro romance recente bastante festejado: Tempo de Espalhar Pedras, do potiguar Estevão Azevedo) se estende também à sua temática, que se afasta da ambiência metropolitana e recupera o nosso passado agrário — sem deixar de nos oferecer uma visão profundamente atual de problemas, hoje, também urbanos: as tensões entre classes sociais privilegiadas e desfavorecidas, o racismo que permeia esta relação de tensão, bem como sua manifestação na configuração de nossas cidades — com seus muros que separam, como cercas, os grandes condomínios das grandes favelas.
A identificação de Vieira Jr. com esta literatura (de resto, já expressa em alguns de seus contos — ele é autor de dois volumes de narrativas breves: Dias e A Oração do Carrasco), revela-se desde a epígrafe, que evoca talvez a grande referência deste nosso século a orbitar neste universo: o paulista Raduan Nassar (não hesitaria ao colocar ao seu lado o amazonense Milton Hatoum).
Mais jovem que ambos, recentemente consagrado com o Prêmio LeYa de Literatura, impressiona — mas não é de se estranhar — a forma como o autor baiano dá um toque ainda mais telúrico ao seu trabalho: indo ao âmago não de uma sociedade influenciada pelas correntes migratórias do final do século 19 e início do século 20, mas de dois povos ainda mais ancestrais na configuração de nossa identidade: os nativos indígenas e os povos de descendência africana, trazendo para o centro da história uma comunidade quilombola liderada por Zeca Chapéu Grande, pai daquelas duas personagens, um líder também espiritual, “cavalo” para as almas dos “encantados” que se revelam nas noites de jarê.
Uma destas “encantadas”, por sinal, é narrador ade uma das seções do romance. Dividida em três partes,“Fio corte”, “Torto arado” e “Rio de sangue”, a ficção é hábil na alternância de vozes. A que abre é a primeira pessoa de Bibiana, uma das irmãs que, num acidente ao abrir os pertences da avó Donana, perde a língua e a voz; a segunda é narrada por Belonísia, que ficou com uma cicatriz do acidente e também oferece sua versão do que ocorreu e do seu desdobramento na vida da família; e a terceira é narrada pela Santa Rita Pescadeira (uma grande cartada técnica de Itamar, relegando a esta narradora “onisciente” a função de encerrar — de forma brilhante, por sinal — a unidade do romance).
É linda a metáfora da ausência da fala e da cicatriz, em se tratando de personagens como estas, mulheres, negras, sempre silenciadas e marcadas por preconceitos, dentro e fora da literatura. É incrível como o escritor trabalha as sutilezas desta história: o passado sugestivo de Donana; a relação sutilmente homoafetiva entre Bibiana e Maria Cabocla; a própria rivalidade das irmãs que em certo ponto competem pelo amor do personagem Severo (e sua interessante evolução, introduzindo aos habitantes de Água Negra uma maior consciência social diante do problema da terra).
Em meio a isso, detalhes históricos que vão sendo inseridos, como as grandes secas que assolaram o Nordeste, a chegada da televisão aos povoados rurais (muito antes da energia elétrica), o surgimento das ligas camponesas e de sindicatos que começam a minar as estruturas de poder dos grandes latifundiários e do sistema de patriarcado. Os monólogos sobre a terra e o suposto direito de se apoderar dela (disputado entre senhores e servos) são culminâncias de poesia que nunca desviam Itamar de sua maneira de narrar construindo, ao modo freiriano, um lirismo do oprimido — que nem é a emulação do seu falar nem a apropriação dele para uma estética mais autoral: é algo mais delicado e fugidio, como a areia que fica ao se colocar todo esse barro na mão e manejá-lo.
O sopro que Itamar Vieira Junior dá para conferir vida a todos estes elementos foi, sem medo de arriscar pelo reconhecimento que já logrou em Portugal, um dos pontos altos da literatura lusófona da última década. As repercussões que trará para esta que viveremos, que sem dúvida ainda há de render o seu devido reconhecimento, prometem novos saltos: do tamanho da curiosidade que haveremos de nutrir por esta carreira que só está começando.
Cotação: 5/5 [Ótimo]
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3250859003
Próxima leitura: Cancún, de Miguel del Castillo