Composteira de descomposturas

Tiago Germano
2 min readApr 5, 2020
“A Jaca do Cemitério É Mais Doce” (Alfaguara, 2019), Manoel Herzog

Um dos vencedores do Prêmio Machado de Assis e semifinalista do Prêmio Oceanos, ano passado, A Jaca do Cemitério É Mais Doce, romance do paulista Manoel Herzog, faz jus à sua repercussão positiva. Parte da sua autenticidade se deve ao seu estranhamento, esse atributo que não fica só no título: é produto da própria linguagem de Herzog, que se adequa tão bem ao por natureza inadequado personagem de Santiago, um trabalhador industrial de Cubatão que, nas horas vagas, dedica-se à gafieira com Natércia, sua mulher. A outra parte é tão ou mais difícil de explicar: é a parte do imponderável, este elemento que sempre cerca a grande literatura.

Dividindo a casa com dois gatos e uma composteira (dispositivo caseiro que transforma o lixo em insumo agrícola), Santiago rumina a história de amor cheia de pequenas tragédias que envolveu ele, Natércia e Vivaldo, o professor de dança com quem ela vai ao baile na ausência do marido aos sábados — em seus plantões na indústria química. A composteira não é apenas um elemento-chave da trama desta narrativa (cujas tensões vão fermentando, transformando o enredo falsamente banal num poderoso thriller noir suburbano), mas uma verdadeira metáfora para a literatura de Herzog aqui: uma mixórdia de fragmentos, lascas do cotidiano matrimonial de Santiago e Natércia, bem como da sua rotina no clube ou na indústria — a camaradagem, os desafetos… — ingredientes que o escritor vai lançando ao léu e deixando descansar até que, no decorrer das páginas, reste apenas o húmus que vai adubar o terreno para um organismo vivo que cresce frondoso, já no terceiro ato da obra, rendendo seu doce e suculento fruto.

É quando a violência que irrompe da relação com Natércia confere à morosidade da vida de Santiago, agora inválido, na companhia de outras figuras femininas — como Mitiko, Marcleide e Cremilda -, um clima de suspense que Herzog conduz com uma habilidade quase hitchcockiana, compondo cenas memoráveis como a da morte do pai de Mitiko, afogado, expelindo crustáceos pelo corpo (uma imagem carregada de beleza e de asco, rescendendo ao caldo pútrido que parece ir se desprendendo da obra conforme vamos avançando e a composteira vai reaparecendo com o seu terror simbólico, com o seu chorume que nós não conseguimos jogar fora).

Impossível não se deixar degenerar na confusão psicológica de Santiago, e assimilar a culpa de um protagonista tão empático, mesmo em suas mais atitudes mais antipáticas. Esta talvez seja a grande virtude de A Jaca do Cemitério É Mais Doce: a incrível capacidade de Manoel Herzog, que ele esbanja como parecesse fácil, de conseguir tornar deliciosa uma história tão difícil de se digerir — como deve ser a fruta de um cemitério.

Cotação: 5/5 [Ótimo]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3262608487

Próxima leitura: O Verão Tardio, Luiz Ruffato

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.