Colorindo a sépia da narrativa histórica

Tiago Germano
3 min readAug 7, 2019

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“Última Hora” (Record, 2017), José Almeida Júnior

Getúlio Vargas foi uma das figuras mais controversas da política nacional. De pai dos pobres a ditador anticomunista, cabem a ele e aos seus anos de poder tantos epítetos quanto marcos legislativos, ações que até hoje repercutem no cenário republicano. Getúlio é um dos vários personagens históricos proeminentes de Última Hora (Record, 2017), romance de estreia do potiguar José Almeida Júnior que incorpora tal controvérsia e a utiliza em prol de uma construção ficcional complexa, que tem no protagonista Marcos (um jornalista comunista que aceita trabalhar num tabloide getulista meses antes dos famigerados eventos que levaram ao suicídio do presidente) sua melhor representação.

Ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura de 2017 e indicada ao Jabuti, a narrativa é conduzida em primeira pessoa por este personagem igualmente conflituoso, que de início é instado a ir contra as suas convicções ideológicas a fim de sustentar as ambições burguesas de sua família: a esposa Anita, uma ex-militante do partido comunista que abandonou a luta revolucionária em favor da vida doméstica, e o filho Nandinho, um adolescente em plena revolta hormonal e parricida, que sonha em seguir uma carreira militar e ter uma vida cheia de regalias como a dos seus vizinhos, donos de uma mercearia onde Marcos é eterno devedor.

Um dos grandes méritos do livro é firmar um vigoroso laço de empatia entre o leitor e estes personagens tão opacos ou, por vezes, antipáticos: não apenas o protagonista, aqui, está em eterna negação do seu ideal heroico como também todos os outros personagens do seu núcleo familiar, como a esposa (que se deixou embalar pelo cotidiano burguês) e o filho (um adolescente rebelde, embora no entanto seja o mais conservador dos três).

O que, em alguns momentos, pode parecer uma grande fragilidade do enredo — em certos pontos sentimos a personagem Anita negligenciada, e nos questionamos como sua aguerrida vocação revolucionária se dissipou depois do matrimônio — logo vai se transformando em um dos seus maiores trunfos quando Almeida Júnior, alternando presente e passado, começa a imiscuir à rotina do jornal Última Hora as reminiscências de Marcos nos seus anos como integrante do partido junto com a esposa.

A grande fragilidade, de fato, acabam sendo os diálogos: profusos e sem qualquer inciso, o que imprime um ritmo apressado à história e dificulta a identificação dos interlocutores em cada cena. O recurso quase sempre é utilizado com fins narrativos, trazendo informações que talvez pudessem ser substituídas por uma voz narrativa mais perspicaz. Apesar ou em virtude disso, é interessante observar como o autor não hesita em trabalhar com os dados históricos (sobretudo nas circunstâncias que envolvem personagens conhecidos, como o próprio Getúlio e o então jornalista e dramaturgo emergente, Nelson Rodrigues), sem se deixar capturar pelas armadilhas de uma eventual glamourização: eles são apresentados diretamente, sem grandes arroubos descritivos nem características afetadas pela percepção do farto material biográfico disponível.

Salvo a insistente alusão às marcas, que quiçá pudesse ser melhor calibrada a este estilo direto de sua prosa, Almeida Júnior consegue dar um colorido vivo ao seu romance — sem os tons sépias que costumam permear a ficcionalização de fatos reais. Falta habilidade também nas cenas de sexo — constrangedoramente ruins, embora felizmente tímidas dentro de um romance volumoso, com passagens de maior êxito.

Ao fim e ao cabo, Última Hora revela-se uma longa porém valiosa empreitada, com um arremate digno dos melhores folhetins de Nelson Rodrigues, esta referência que paira nas páginas e que Almeida Júnior não esquece de honrar com sua ironia.

Cotação: 4/5 [Muito bom]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2917885996

Próxima leitura: “Mônica Vai Jantar”, Davi Boaventura

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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