Bolaño desencarnado

Lançado postumamente, O Espírito da Ficção Científica (Cia. das Letras, 2017) é um reencontro com um primeiro Bolaño, antes do caudal de uma obra que tornou o seu nome fonte perene, repleta de afluentes, no delta literário hispano-americano. Com poucas páginas, numa estrutura concisa, a novela consegue reunir certos temas obsessivos e recorrentes dentro do universo de sua literatura, como a amizade tendo como signo comum a pobreza e a paixão incondicional pelos livros.
Aqui, os amigos em questão são Jan e Remo, este mais velho que aquele — um dos alteregos de Bolaño, um jovem de dezessete anos que ambiciona tornar-se escritor de ficção científica e intervém na narrativa de Remo através de cartas enviadas aos seus autores preferidos. Remo tem pouco mais de vinte anos e é poeta, divide um apartamento minúsculo com Jan e sua infinita biblioteca, e ganha a vida colaborando para publicações de literatura que se multiplicam na Cidade do México assim como as oficinas de criação, uma das quais ele passa a frequentar com desinteresse.
Em périplos por uma DF pontilhada por jovens poetas laureadas e cafés decadentes, Jan e Remo, ambos imigrantes chilenos, conhecem figuras como o também poeta José Arco e as amigas Angélica e Laura — que Remo passa a amar perdidamente, embora de início não consiga corresponder sexualmente e comporte-se como um mutilado de Hemingway. Além das cartas de Jan, uma entrevista com Remo interrompe vez ou outra a narrativa. O diálogo marca também as passagens em torno do ritual matutino de Jan e Remo, que depois do sono costumam narrar seus sonhos enquanto fazem o café da manhã. A prosa ganha um caráter de devaneio, de viagens oníricas cá e lá temperadas com referências aos romances lidos por Jan.
É aí que se manifesta o verdadeiro “espírito da ficção científica”, embora a relação dos amigos se torne mais sedutora quando Bolaño se dedica a desenhar o cenário do apartamento, com seus móveis feitos de livros velhos, e quando conta como os exemplares vão se intrometendo na rotina doméstica, em afazeres banais como comer ou se preparar para dormir. A relação de Remo e Laura também só chega ao clímax perto do desfecho, no capítulo “Manifesto Mexicano”, que (como todo o resto do livro) trai a sua dimensão ensaística com uma espécie de aparte erótico sobre as incursões da lúbrica Laura e o ainda passivo Remo pelos banhos públicos da cidade.
À semelhança do que ocorre em A Literatura Nazista na América Latina (recentemente lançado no Brasil), é em pequenos excertos como esse, de pouco mais de dez páginas, que a literatura de Bolaño se assoma sobre qualquer maneirismo porventura encontrado em seu modo tão peculiar de escrever. É quando sua voz se agiganta, e vislumbramos enfim o último Bolaño — talvez o próprio espírito de sua prosa, que ele lutou a vida inteira para desencarnar.
Cotação: 3/5 (bom)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2872743038?book_show_action=false
Próxima leitura: “Uma Mulher no Escuro”, Raphael Montes