As mil e uma noites de Nazarian

Tiago Germano
3 min readOct 11, 2020
“Fé no Inferno” (Cia. das Letras, 2020, 400 p), Santiago Nazarian

Não há terror maior que a história de um genocídio. Por isso, não é de se estranhar que a transição de Santiago Nazarian para o realismo esboçado em “Fé no Inferno”, seu mais recente romance, se dê ainda com uma boa dose do terror que lhe rendeu títulos como os últimos “Biofobia” (2014) e “Neve Negra” (2017).

Intercalando capítulos realistas com outros mais alegóricos (que em seus melhores momentos me lembraram um improvável encontro entre a literatura Safran Foer e o cinema Lars von Trier), Nazarian dá um salto ambicioso em sua prosa e se propõe a narrar o genocídio armênio, historicamente anterior ao judeu e menos privilegiado que este na memória coletiva do século 20.

Brasileiro descendente de armênios, Nazarian constrói um paralelo interessante entre dois genocídios — o armênio e o americano — ao escolher um jovem brasileiro com ascendência indígena como narrador de seu livro. Cláudio é um empenhado cuidador de idosos contratado para fazer companhia a Domingos, um senhor armênio de idade indefinida que vive nos Jardins, na zona nobre de São Paulo. Suposto sobrevivente do genocídio armênio, seu Domingos vive sua velhice numa biblioteca cheia de livros, escritos todos com versões de uma mesma história: o massacre perpetrado pelos turcos ao seu povo, no contexto da Primeira Guerra Mundial.

Para além da questão étnica, Cláudio carrega um outro estigma que aproxima seu drama do de Domingos: a homossexualidade. Do seio de uma família evangélica, Cláudio foi abusado na infância e teve passagens por instituições penais antes de se dedicar à sua profissão, que veio justamente em consequência dos imbróglios judiciais pelos seus atos. Vivendo com seu namorado artista numa quitinete no Baixo Augusta, contemplando a ascensão do bolsonarismo num Brasil que flerta descaradamente com o fascismo de outros tempos, Cláudio não é apenas o sobrevivente de um genocídio do passado: mas de um genocídio em curso, de indivíduos iguais a ele.

Um laço de empatia vai se firmando entre Cláudio e Domingos à medida que o cuidador passa as noites no apartamento da família, lendo um dos livros que retirou da estante do velho quando seu game portátil já não era distração suficiente para as horas mortas em que atuava como “extintor de incêndio de um carro estacionado” — o idoso, que exibe uma saúde sobrenatural, como que renovada por uma lata de amêndoas que guarda e vampirizada pela sobrinha-neta, de olho em sua herança.

Talvez a resposta para a juventude eterna de Domingos esteja nas parábolas daquele livro, que quando Cláudio abre nos coloca numa posição isomórfica à dele: como o sultão que se torna escravo das histórias de Xerazade em “As Mil e uma Noites”, nós — leitores de “Fé no Inferno- nos vemos também escravizados àquele livro, só acessado pela leitura de Cláudio. À parte não conseguirem manter a mesma potência que têm no início, derivando cada vez mais para a alegoria, fugindo um pouco da crueza visceral das primeiras páginas, são as narrativas daquele livro, supostamente escrito por Domingos, o motor do romance: o que nos mantém rondando a armadilha, até o ponto que somos devidamente capturados e já é impossível não terminar o livro (bem mais longo que os anteriores de Nazarian: com quase 400 páginas).

Próximo ao final, a “ficção” de Domingos vai se tornando menos interessantes que a “ficção” que temos nas mãos, de Cláudio (cujo passado, felizmente, vem em nosso socorro, como um novo abismo dentro do abismo). Mas aí a lâmina do sultão já descansou e está nas mãos da Xerazade: Nazarian, que nos brinda com seu epílogo que dá uma dimensão quase bíblica a toda esta história.

Cotação: 3/5 [Bom]

Próxima leitura: “Fake Fiction”, Julia Dantas e Rodrigo Rosp (Org.)

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3590685121

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.