“As Leis da Fronteira”, Javier Cercas

“Se a pessoa não entende que tem coisas mais importantes que a verdade não entende como a verdade é importante”, diz Ignácio Cañas, protagonista deste As Leis da Fronteira (Biblioteca Azul, 2013), falando sobre o barro de que é feita a literatura de Javier Cercas: a verdade, cujo caráter elástico o autor é mestre em testar — esticando, torcendo, moldando, dando a ela o comprimento que lhe cabe ou que cabe à sua ficção.
Se há algo “falso” neste romance, isso deriva das próprias limitações do realismo, esse simulacro do real: estruturado a partir de depoimentos dados a um escritor que pretende contar a história de uma gangue de quinquis (espécie de ciganos que eram identificados com a delinquência na Espanha pós-franquista), o romance tem os truques de uma narrativa convencional, nos fazendo esquecer que estamos lidando com vozes distintas e harmonizando-as de acordo com as arbitrariedades de um só narrador.
Descontados os artifícios típicos do realismo, o trabalho é um tour de force incansável, na medida em que só a sua primeira parte já se constituiria numa obra com um arco fechado e bem trabalhado. Javier Cercas, porém, não se contenta com isso e amplia este arco: que vai da adolescência de Cañas, um jovem de classe média que, por amor a uma quinqui, se envolve na gangue de Zarco, seu suposto namorado; até a idade adulta — quando Cañas, já um advogado respeitado, resolve defender Zarco num momento em que seu passado se tornou uma narrativa mítica, perpetuada por um circo midiático composto de filmes, livros e reportagens.
O confronto entre essa narrativa mítica e o relato nostálgico de Cañas (contraposto pelo depoimento de um inspetor de polícia responsável pela captura de Zarco) é o que confere ao livro esta dimensão filosófica em torno da verdade, um conceito que nunca conseguimos dotar de imparcialidade, logrados que somos pelas armadilhas do afeto e da memória.
Cotação: 5 /5 (ótimo)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2835852166?book_show_action=false
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