Animais fantásticos e onde habitam

Tiago Germano
3 min readMar 27, 2020

“Estados Alucinatórios”, Eduardo Sabino

Com Naufrágio Entre Amigos (Patuá, 2016), Eduardo Sabino se inscreveu na galeria dos melhores contistas de uma geração composta por nomes como a gaúcha Natalia Borges Polesso e o cearense Marco Severo. Estados Alucinatórios é sua terceira coletânea de contos e primeira empreitada como editor da Caos & Letras, selo mineiro que fundou junto com o também escritor Cristiano Silva Rato.

Com 11 textos, o volume tem um acento menos intimista que o das narrativas anteriores, nas quais o autor compunha, a partir da colagem de fragmentos pessoais, toda a poética de uma vida pacata e interiorana. Este cotidiano banal permeia, sim, alguns contos mais realistas (como “Alice e as barragens”, “Deu Pau” ou “Pessoa Física”) mas não é exatamente o ponto de coesão aqui. Nesta nova incursão pela narrativa breve se sobressai, como o título sugere, um trânsito sensitivo entre realidade e fantasia, com os pés se equilibrando sempre neste limiar tênue que ora se arrisca a flertar com outros discursos como o da parábola, por exemplo.

É o caso do ótimo “A natureza suína”, conto sobre uma família de suínos e o filho rebelde, que começa a ter contato com a arte subversiva dos humanos após uma revolução que levou os porcos ao topo da cadeia evolutiva. A vertente orwelliana é tão notável quanto a kafkiana. Em “O abraço da serpente”, o professor F (!) encontra-se com a serpente em questão num conto de viés figurativamente mais filosófico, em que os ótimos enredos de Sabino dão lugar a uma “alucinação” um pouco mais difícil de se imergir (algo que ocorre também em “Ofertório”, um monólogo em que o devaneio religioso substitui o filosófico na fala de um pastor preparando uma performance teatral com ares de rito de sacrifício).

O tom de oralidade está também presente em “Um Sonho Chinês” (em que um amigo relata a seu interlocutor a impressão de estar vivendo a vida de um boneco) e “Pérolas aos demos” (em que o Sabino e sua profusão de referências musicais exposta nos contos de Naufrágio entre amigos passa o bastão ao Sabino cinéfilo, abrindo as caixas de VHS dos filmes de terror dos anos 1980).

O grande destaque do livro fica por conta de suas experiências com o fantástico em sua maneira latina, em contos como “Alimentando Júnior” (sobre um professor que passa a criar um crocodilo dentro de casa) e “Blattaria” (sobre um casarão e sua família de moradores e a ameaça gradativa de serem dominados pelas baratas que vivem no subsolo). São dois contos que abririam com mais estilo que “Samuel e Samael”, que registra o tema da possessão (explorado em muitos dos contos citados), mas o faz com menor ousadia, com um humor que, no desfecho, tem um apelo quase ingênuo.

Ingênuo, entretanto, é algo que Eduardo Sabino definitivamente não é. E sua carreira como contista segue sendo uma das mais sérias e dignas de se acompanhar — na paisagem de uma literatura contemporânea em que o conto, felizmente, segue desafiando o romance como verdadeiro campo de enfrentamento estético. E de muita coragem.

Cotação: 3/5 [Bom]

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3048588575

Próxima leitura: Lauren, Irka Barrios

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

No responses yet

Write a response