“Angosta”, Héctor Abad

Tiago Germano
4 min readJun 1, 2019

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“Angosta” (Cia. das Letras, 2015)

Só é possível caracterizar Angosta (Cia. das Letras, 2015) como uma distopia pelos seus elementos mais realistas e contundentes, claramente tomados de empréstimo de uma Colômbia assolada pela violência — a tolerada, a endossada e a exercida por seus aparatos estatais. Numa sociedade dividida por três castas: os dons (a elite secular, formada por latifundiários e seus herdeiros), os segundóns (a classe média trabalhadora) e os terceiróns (a massa humana, miserável e indigente), esta cidade que é um misto de todas as capitais latino-americanas e vive sob o estro do Apartamento, uma política de segregação que permite que os ricos vivam numa área nobre e de difícil acesso denominada Paradiso, enquanto os demais se organizam em partes inferiores e limítrofes da cidade, fortemente controladas e vigiadas pelos olhos do Estado.

É neste cenário que conhecemos Jacobo, um livreiro que cultiva um ideal de vida hedonista financiado por uma herança que ganhou da mãe — uma senhora que abandonou o segundón pai de Jacobo para viver com um don, deixando parte de sua fortuna para o filho. Pelo volume de sua conta bancária, Jacobo poderia se tornar também ele um don, mas prefere seguir com sua vida pacata de solteirão, morando num hotel decadente chamado La Comedia, eventualmente atravessando os limites de Paradiso para visitar sua filha Sofía, fruto de um primeiro casamento malfadado com Dorotea, hoje esposa de um rico arquiteto.

Outro que também tem a permissão de cruzar os limites de Paradiso é Andrés, um poeta que é uma espécie de antípoda de Jacobo: sonhador e virginal, fruto de uma família disfuncional com a qual corta laços após obter um emprego na Fundação H, uma organização filantrópica que luta pelos direitos humanos. Após se mudar para o La Comedia, Andrés conhece Jacobo, que acabou de ser espancado pela gangue de um mafioso, namorado de uma de suas amantes, a lúbrica Camila.

A amizade se aprofunda com a chegada de Virgínia, uma jovem terceirona que também se torna uma das muitas parceiras de Jacobo. Eles passam a dividir o amor desta garota, que também pleiteia seu salvo-conduto para poder entrar em Paradiso e trabalhar como auxiliar de uma das livrarias que fazem negócio com Jacobo.

Dessa profusão de personagens, de início, Héctor Abad não consegue dar conta, com suas incessantes e cansativas notas de rodapé, que às vezes têm a função acessória de apenas contar a história de fundo destas figuras, sem fatos ou eventos de repercussão substancial no enredo. Passada esta primeira fase de apresentação, é incrível como o autor penetra na vida interior destes personagens, sobretudo Jacobo (seu monólogo com o professor Dan, que justifica sua sanha carnal, ou sua discussão com o arquiteto, esposo de sua ex-mulher) e Andrés (cujas entradas de diário compõem o outro suporte além da narração em terceira pessoa, focalizada no protagonista Jacobo e amiúde se alternando entre personagens coadjuvantes como Beatriz, uma jovem a quem o livreiro ministra aulas de inglês).

Há um interlúdio maravilhoso bem na metade do livro, em que Jacobo visita a biblioteca deixada por um crítico literário (sempre intactas porque “o crítico não tem nem tempo nem vontade de ler os livros que resenha”), e Abad aproveita para fazer uma homenagem ao seu ídolo Cervantes, parodiando “Dom Quixote” e a famosa cena da biblioteca de Alfonso Quijada. É deliciosa a maneira como ele fala sobre os cânones da literatura latino-americana, desancando farsantes como Paulo Coelho, e fazendo tiradas cômicas sobre Jorge Amado, Vargas Llosa e García Márquez, “o maior de todos”, cuja homenagem não se resume a esta aqui e se estende a Macondo (que no seu universo geográfico é um povoado próximo a Angosta) e aos Buendía (um deles, Aureliano Buendía, que “morreu sozinho, fazendo peixinhos de ouro”, é tataravô de Virgínia).

Outro intertexto interessante se estabelece com A Ausência que Seremos (Cia. das Letras, 2011), livro publicado no Brasil antes de “Angosta”, mas posterior a ele na cronologia de títulos do autor. Vários personagens da ficção (como o próprio Jacobo, alter ego de Abad, e o Sr. Burgos, possível duplicata do pai do autor, assassinado pelos sicários por sua atuação como defensor dos direitos humanos) têm seu paralelo nas pungentes memórias do escritor, minha porta de entrada na sua ficção.

Se, na memória, Abad consegue ser no mais das vezes caudaloso e visceral, mas também seco e contido quando necessário, aqui, na ficção, ele igualmente esbanja este equilíbrio, com uma prosa ora milimetricamente anódina, ora adjetivada às raias da exuberância. Um mestre caminhando nesta fina corda bamba entre a arte de narrar e estilizar o narrado.

Cotação: 5/5 (Ótimo)

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2839821393?book_show_action=false&from_review_page=1

Próxima leitura: As Coisas que Perdemos no Fogo, Mariana Enríquez

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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