A tirania da forma

Tiago Germano
3 min readApr 25, 2020
“A Tirania do Amor” (Todavia, 2018), Cristovão Tezza

É mais fácil de se compreender A Tirania do Amor (Todavia, 2018) quando se percebe que sua forma (sua feição técnica, bastante madura, vale salientar) vem sendo exercitada dentro da obra de Tezza desde Um Erro Emocional (2010), talvez, com voos mais radicais (embora ainda não tão bem sucedidos, pelo menos no caso do primeiro, que li), em títulos como O Professor (2014) e A Tradutora(2016). Trata-se de uma narrativa espiralada (há uma mestra contemporânea nisso e ela se chama Elvira Vigna), centrada num mote episódico e em variações ou digressões circulares do narrador em torno dele, à medida que a narrativa avança, com seus personagens e suas ações.

À diferença do que ocorria em Vigna, porém, em Tezza este belo artifício técnico (por mais bem executado que seja) soa como mera firula quando a serviço de um enredo pífio, e de personagens um tanto translúcidos e caricatos — que parecem única e exclusivamente conspirar à trama urdida em torno do seu protagonista. Colocando em termos de firula, é a diferença entre um Ronaldinho Gaúcho e um Neymar: este dá o drible antes de ser derrubado, aquele dá o drible antes da assistência para o gol.

Não mais de uma vez, o próprio Tezza já lamentou sua falta de capacidade imaginativa (vide o prefácio de Beatriz, próximo livro que resenho). É uma autocrítica injusta a romances como “Trapo”, “O Filho Eterno” ou “A Suavidade do Vento”, que talvez sejam narrativas antípodas da própria experiência do Tezza autor, na ficção, mas ainda assim: são narrativas impossíveis de serem realizadas por uma capacidade imaginativa limítrofe.

O que acontece em A Tirania do Amor é mais digno de mea culpa: Otávio Espinhosa é um economista um tanto macaqueado, com seu talento de extrair a raiz quadrada de toda e qualquer sequência numérica que apareça à sua frente. Paira sobre ele os clichês ou da narrativa pré-bolsonarista (que já começa a se consolidar, com seus gurus lunáticos que tentam transpor para as páginas o personagem real Olavo de Carvalho — aqui representado pelo próprio Espinhosa, ou o seu alterego Kelvin Oliva) ou da narrativa do próprio Tezza (o casamento fracassado e as fantasias homicidas do marido, bem como o filho disfuncional — presente aqui numa caricatura dispensável do militante de esquerda, muito mais contaminada pela frustração de Tezza com a esquerda que influenciada por sua habilidade de criar tipos humanos).

É possível se abstrair tudo isso e ter uma experiência de leitura, do fluir do texto e do fruir o texto (óbvio: são anos de um patrimônio ficcional investido aqui, de um escritor de atributos incontestáveis), mas o substrato é ainda pouco para ser considerado fora da alçada da forma. É a tirania dela, o desafio de encará-la, domá-la e domesticá-la, que talvez leve o próprio Tezza a considerar esta sua obra-prima. O raciocínio nunca foi tão distante do que pensa o seu leitor, e me lembra um García Márquez mais deslumbrado com seus livros técnicos (e ilegíveis) que com os seus mais sublime e legíveis (e tão técnicos quanto, embora de uma técnica que ele se esmerasse em dominar e virar as costas).

Saudades do velho Tezza, para o qual o novo Tezza virou as costas.

Cotação: 2/5

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/3300636659

Próxima leitura: Beatriz, do mesmo autor

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Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.