A “Recoleta” de Mariana Enríquez

Tiago Germano
2 min readJun 5, 2019

“Coisas que Perdemos no Fogo” (Intrínseca, 2017), Mariana Enríquez

Dos 12 contos de As Coisas que Perdemos no Fogo (Intrínseca, 2017), apenas três parecem destoar da atmosfera fantástica que confere à coletânea uma unidade dentro desta tradição tão bem cultivada pelos narradores latino-americanos: “O Menino Sujo” — que em certo sentido já é um esboço do universo sombrio em que Mariana Enríquez ambienta suas demais histórias -, “A Hospedaria” e “Os Anos Intoxicados”.

É, curiosamente, a tríade com a qual a autora escolhe abrir o volume, o que ameniza o seu impacto inicial, mas estabelece uma espécie de ordem mais tarde perturbada pelos mistérios que começam a ser introduzidos no clímax do livro: os contos “A Casa de Adela”, provavelmente o melhor de toda a coleção, e “Pablito Clavó un Clavito”, talvez o único protagonizado por um personagem masculino — o guia turístico de um passeio macabro, afetado pelas histórias do Baixinho Orelhudo (um famoso assassino serial da Argentina) e pelas consequências que a paternidade trouxe para o seu casamento e para a relação com a sua esposa.

Até no recorte inusitado deste último, Enríquez exibe maestria ao tratar a violência — esse atributo historicamente associado à masculinidade — como uma alegoria eruptiva das dissonâncias sociais às quais suas personagens estão sujeitas: o que é mais patente no conto que dá título ao livro, mas permeia todos os outros, ora de forma mais ativa (como é o caso de “Sob a Água Negra”, em que uma promotora investiga os excessos cometidos pela polícia numa comunidade às margens do Riachuelo), ora de forma mais passiva (como é o caso dos dramas domésticos que se desenrolam em “Teia de Aranha”, “Nada de Carne Sobre Nós” e “O Quintal do Vizinho”).

Os contos mais breves (“Fim de Curso” e “Verde Vermelho Alaranjado”) têm a virtude de inserir na hesitação entre o real e o sobrenatural o componente da neurose, da paranoia e da loucura. Neles, pairam os fantasmas dos mortos sobre os quais a classe média construiu seu cemitério ilusório de paz — este tão almejado e tão impossível destino do nosso continente. Tal cenário, que o cinema argentino já é tão hábil em produzir, Mariana Enríquez reproduz em sua literatura: um passeio por uma Recoleta de pequenos monumentos de tragédias e dores.

Cotação: 5/5 (Ótimo)

Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2842224521?book_show_action=false

Próxima leitura: Jamais o Fogo Nunca, Diamela Eltit

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Tiago Germano
Tiago Germano

Written by Tiago Germano

Escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.

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