A “Recoleta” de Mariana Enríquez

Dos 12 contos de As Coisas que Perdemos no Fogo (Intrínseca, 2017), apenas três parecem destoar da atmosfera fantástica que confere à coletânea uma unidade dentro desta tradição tão bem cultivada pelos narradores latino-americanos: “O Menino Sujo” — que em certo sentido já é um esboço do universo sombrio em que Mariana Enríquez ambienta suas demais histórias -, “A Hospedaria” e “Os Anos Intoxicados”.
É, curiosamente, a tríade com a qual a autora escolhe abrir o volume, o que ameniza o seu impacto inicial, mas estabelece uma espécie de ordem mais tarde perturbada pelos mistérios que começam a ser introduzidos no clímax do livro: os contos “A Casa de Adela”, provavelmente o melhor de toda a coleção, e “Pablito Clavó un Clavito”, talvez o único protagonizado por um personagem masculino — o guia turístico de um passeio macabro, afetado pelas histórias do Baixinho Orelhudo (um famoso assassino serial da Argentina) e pelas consequências que a paternidade trouxe para o seu casamento e para a relação com a sua esposa.
Até no recorte inusitado deste último, Enríquez exibe maestria ao tratar a violência — esse atributo historicamente associado à masculinidade — como uma alegoria eruptiva das dissonâncias sociais às quais suas personagens estão sujeitas: o que é mais patente no conto que dá título ao livro, mas permeia todos os outros, ora de forma mais ativa (como é o caso de “Sob a Água Negra”, em que uma promotora investiga os excessos cometidos pela polícia numa comunidade às margens do Riachuelo), ora de forma mais passiva (como é o caso dos dramas domésticos que se desenrolam em “Teia de Aranha”, “Nada de Carne Sobre Nós” e “O Quintal do Vizinho”).
Os contos mais breves (“Fim de Curso” e “Verde Vermelho Alaranjado”) têm a virtude de inserir na hesitação entre o real e o sobrenatural o componente da neurose, da paranoia e da loucura. Neles, pairam os fantasmas dos mortos sobre os quais a classe média construiu seu cemitério ilusório de paz — este tão almejado e tão impossível destino do nosso continente. Tal cenário, que o cinema argentino já é tão hábil em produzir, Mariana Enríquez reproduz em sua literatura: um passeio por uma Recoleta de pequenos monumentos de tragédias e dores.
Cotação: 5/5 (Ótimo)
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2842224521?book_show_action=false
Próxima leitura: Jamais o Fogo Nunca, Diamela Eltit