A dor que não sai no jornal

O Massacre do Realengo, como foi denominado à época pela imprensa, foi um dos primeiros episódios desta natureza a ocorrer no Brasil e voltou à memória coletiva recentemente, após os trágicos eventos ocorridos numa escola em Suzano. Remetendo-se à chacina como clímax de uma história de amizade entre duas garotas, Daniela Kopsch estreia na literatura com O Pior Dia de Todos (Tordesilhas, 2019), livro que faz migrar a narrativa do massacre das páginas dos jornais para as da literatura.
Repórter que cobriu a tragédia em 2011, Kopsch baseia apenas certas passagens da trama nos acontecimentos que levaram à morte de 12 estudantes (a grande maioria mulheres) e do assassino, ex-aluno da escola pública que atacou numa típica manhã de subúrbio, no Rio de Janeiro. Seu verdadeiro eixo é a relação de afeto entre as jovens Natália e Maria Laura, primas que foram criadas como irmãs e cresceram no seio de uma família proletária, que divide sua rotina entre trabalhos manuais e os cultos numa igreja evangélica.
Laura, a narradora, foi deixada pela mãe na casa da tia e, embora se sinta plenamente acolhida pelos parentes, experimenta o abandono de uma vida constantemente submetida ao contraste daquela que, por direito, pertence à sua antípoda: Natália, a prima com quem divide o quarto de dormir e a sala de aula. Os dramas próprios da formação das garotas, como namoros feitos e desfeitos, mergulham em outros abismos mais profundos, como o racismo e o abuso que permeiam o trato das meninas com um casal de vizinhos, pais de uma de suas colegas.
Tais traumas, porém, passeiam de maneira um tanto apressada pelos capítulos curtos que constituem o relato de Laura, dividido entre a primeira parte (a infância até o fatídico dia aludido pelo título) e a segunda (o fim da infância, que acompanha a rotina da família e a elaboração do luto de Laura após o massacre). A opção de Kopsch por situar a narrativa muito mais no núcleo familiar das protagonistas que no da escola tem suas vantagens, mas perde força quando o centro nervoso do romance começa a operar e nos vemos diante de um atirador que dispara contra fantasmas: os colegas de sala de Natália e Maria Laura — personagens que pouco conhecemos em comparação a elas.
Na segunda parte, trechos de um diário de Natália se misturam à narração de Laura, mas são poucas as luzes que estes excertos lançam sobre fatos cuja densidade passa despercebida pela adição de uma nova focalizadora — como o caso do abuso, por exemplo, quiçá vivenciado por ambas. Ao fim, o romance ganha uma circularidade interessante, que associa a leitura do diário e seu final abrupto à própria narração, seguindo o fio das lembranças de Laura.
Abdicando do fetiche midiático criado em torno de nossas catástrofes diárias (problematizando, inclusive, este discurso com o qual a autora se familiarizou na sua profissão), O Pior Dia de Todos entrega ao leitor um registro imprevisto sobre amadurecimento e dor, e sobre o viés humano que se perde quando convertemos vítimas em manchetes com números.
Cotação: 2/5
Review no Goodreads: https://www.goodreads.com/review/show/2973323486
Próxima leitura: Noite em Caracas, Karina Sainz Borgo